quarta-feira, 2 de novembro de 2016
O "espiritismo" defende o desperdício da vida
Imagine uma pessoa empurrando a cabeça de alguém para debaixo d'água enquanto apela para a vítima se esforçar para voltar à superfície? A vítima não consegue se superar, há apelos para ela se esforçar para voltar à superfície, mas ao mesmo tempo barreiras só crescem diante dela.
O "espiritismo" brasileiro, retrógrado e moralista, até condena o suicídio, tratado como um crime hediondo - para os "espíritas", o homicídio é um crime "culposo", movido por supostos "reajustes morais" e ao homicida é atribuída uma moratória de uma encarnação para "pagar o que deve" - , mas também nada faz para combater os motivos que levam alguém a se matar.
Não, ninguém se suicida por hobby, como diversão macabra de perfurar o próprio corpo para ver se as balas de revólver ou a ponta da faca são boas. Não estamos falando de malucos que existem por aí, mas de pessoas que se suicidam porque as barreiras da vida se tornam bastante pesadas para serem suportadas, mesmo com algum esforço.
Os "espíritas" revelam sua desumanidade quando desprezam as desgraças dos outros. "É no pior dos sofrimentos que se obtém a melhor das graças", pregam eles, acrescentando com a falácia "O que é a desgraça de uma encarnação inteira diante das bênçãos eternas da verdadeira vida?", ditas cinicamente por aqueles que, protegidos pelo prestígio religioso da Terra, se acham com um assento garantido no banquete dos puros.
A vida não pode ser um acúmulo de desgraças sem fim, de barreiras difíceis para ser superadas mesmo com o mais trabalhoso esforço. Fica muito fácil pedir para os sofredores e desgraçados da vida aguentarem tudo ou solicitar a eles o máximo de esforço, até acima de suas capacidades, para "vencer na vida".
No entanto, ninguém tem coragem de criticar os que cobram demais e criam barreiras para beneficiar alguém. É muito confortável a pessoa cobrar demais do outro, cobrar esforços descomunais, como que numa escravidão de padrões faraônicos, e forçar o sofredor a abrir mão até do que ele precisa para obter, quando muito, metade de um benefício.
Tudo vira uma questão de sobrevivência, quase animalesca, de quem está debaixo da pirâmide social. Não se critica quem cobra demais, de maneira abusiva ou sem levar em conta as limitações encontradas por quem está "embaixo", por se acreditar que quem está em cima pode exigir tudo porque está na "plenitude de seus méritos".
A hipocrisia "espírita" é apenas uma parte de uma hipocrisia social que permitiu a ascensão ao poder de um presidente de ideias retrógradas, Michel Temer, comprometido apenas com um crossover de elementos institucionais da ditadura militar, praxe política da República Velha e estrutura sócioeconômica do Segundo Império, nos quais se observa quadros de degeneração social diversos.
E o "espiritismo" é em boa parte culpado disso, porque, como suposta vanguarda dos movimentos espiritualistas, que faz até com que determinadas correntes digam com cínico orgulho que "não é uma religião, mas uma ciência", nunca contribuiu para avanço algum da humanidade, reduzindo sua "corajosa missão de caridade" a medidas paliativas que a ninguém jamais se ajudou de forma profunda e definitiva.
O moralismo "espírita" é medieval. Isso não é um juízo de valor. É uma constatação de caráter histórico, pois o "espiritismo" representou o resgate de conceitos jesuíticos do Brasil colonial, assimilando, no seu arcabouço ideológico, o que o Catolicismo brasileiro havia descartado de velho e antiquado.
Deslumbram a muitos, mesmo os não "espíritas", a suposta simplicidade do "movimento espírita" que dispensa os adornos das vestes sacerdotais e da arquitetura das igrejas, e o pretenso e falso racionalismo de seus pregadores, que se consideram acionistas majoritários da verdade.
Mas, diante dessa combinação de falsa simplicidade e falso racionalismo, o "espiritismo" tem uma moral ainda mais perversa do que a católica ou mesmo a neopentecostal, embora esta vertente religiosa seja claramente ligada, e de forma bem assumida, a um repertório moralista e social dos mais retrógrados.
No "espiritismo", que pode ser definido como a "doutrina do se vira", o sofredor tem que pagar o que não tem para obter um benefício. O "se vira nos 80" (com base no tempo estimado de vida humana, de 80 anos em condições naturais, mas pode ser até um terço ou um quarto disso) é uma amostra do descaso que os "espíritas" fazem do sofrimento humano, preferindo o desperdício da vida com sofrimentos pesados que forçam concessões pessoais muitíssimo severas.
Você sai desmontado diante desse espetáculo de infortúnios pesados. As portas fecham mas não é uma janela que se abre. Quando muito, é um buraco fétido que lhe serve de caminho. O desprezo à individualidade pelos "espíritas", vista como um capricho materialista, faz com que o sofredor abra mão até do que precisa e do que sabe para, tão somente, sobreviver.
De que adianta textos "espíritas" falarem de esperança e mostrarem pessoas de braços abertos sorrindo e olhando para o céu, numa paisagem florida e um céu radiante e azul, com um brilho solar atingindo a relva, se seu moralismo retrógrado e medieval diz para a pessoa aguentar o sofrimento ou se esforçar acima de suas capacidades para obter apenas metade do que precisa?
É muito fácil cobrar de quem está embaixo. No entanto, quem está no status quo ou em alguma posição social vantajosa, ainda que seja a etária (como a pretensa maturidade da velhice), fica fácil cobrar de quem não atingiu a plenitude social a se esforçar além da conta e ainda ser culpado pelas barreiras que os outros lhe impõem no caminho.
Um pai irritado cobra do filho mais esforço para procurar emprego e estudar aquilo que tem dificuldade de entender para passar em algum concurso. Mas ignora o problema que o filho tem que, quando se oferece para obter um emprego, ouve um lamento de um profissional de recursos humanos que, meio sem graça, diz que "infelizmente não é possível conceder um emprego".
Da mesma forma, organizadores de concursos públicos criam questões prolixas de provas, com conteúdo fora das exigências específicas de cada função, num questionário que normalmente seria resolvido em dez horas para um concurso de cerca de três horas e meia. O candidato certo para um cargo perde porque tinha que estudar demais e perdeu tempo estudando apenas uma parte do programa de estudos, em dois meses.
As exigências escalafobéticas do mercado de trabalho e do meio acadêmico, justificadas pelo pretexto do moralismo técnico e religioso (quanto mais se esforçar, "meter a cara" e "ralar mesmo", mais se conseguirá alto), que são os princípios da tirania meritocrática, fazem com que, contraditoriamente, o sol brilhe para quem é incompetente mas tem mais sorte na vida.
Como um rapaz que rejeita o pedido de namoro de uma melhor amiga, que depois ele descobre ser o amor de sua vida, muitas instituições deixam de contratar empregados e servidores públicos que poderiam ter uma atuação dinâmica, apenas por frescuras apoiadas por "valiosas tradições morais".
Em contrapartida, as pessoas que "metem a cara", "têm jogo de cintura" e possuem boa aparência e lábia para arrumar um emprego do qual não precisam de verdade, obtém tais funções e, sem ter a competência natural para isso, se corrompem diante da dificuldade do trabalho e do prestígio que ele lhes representa, promovendo um desempenho irregular para inflar suas fortunas pessoais diante do descumprimento dos deveres profissionais.
Isso mostra o quanto o moralismo de "valores nobres" permite a corrupção e a degradação social e moral. Não é estranho o moralismo sem moral, porque o moralismo é severo para quem está embaixo da pirâmide social, mas é flexível até demais para quem está no lado de cima. O moralismo sempre foi pesado para os pobres, nunca para os ricos, e variável na classe média, conforme o "lado" em que ela se apoiar.
É nesse "estado de espírito" que se apoia o moralismo "espírita", que, só por acreditar na reencarnação e na vida após a morte, permite que pessoas percam o tempo colecionando desgraças na vida. Afirmam os "espíritas", arrogantes, que "ninguém está aqui por turismo", se esquecendo que os próprios "espíritas" fazem turismo como mercadores das palavras bonitinhas. Vide Divaldo Franco, por exemplo.
O "trabalho da caridade" não justifica como suposto atenuante do "turismo espírita", com seus membros, de maneira esnobe, viajando para Lyon como quem vai para a Disney World, ou indo ver o túmulo de Allan Kardec em Paris como se estivesse entrando em contato com o Mickey ou o Pato Donald.
Até porque o "espiritismo" ajudou muito pouco em termos filantrópicos. Podemos até dizer que nada ajudou, vide as áreas "iluminadas" de Uberaba e do bairro do Pau da Lima, em Salvador, que são atingidas por pobreza extrema e violência crescente. Ou na Taquara, no Rio de Janeiro, onde um suposto médium foi assassinado em circunstâncias misteriosas.
O "espiritismo", pelo seu conteúdo religioso ultraconservador, nunca ajudou plenamente. A opção original de ter descartado o cientificismo de Allan Kardec e preferido adotar Jean-Baptiste Roustaing, escolha dissimulada ao longo dos tempos a ponto do nome de Roustaing desaparecer, como Eduardo Cunha do cenário político nacional, influi nesse rol de escolhas retrógradas e nocivas à sociedade.
Daí seu moralismo que acaba defendendo o desperdício da vida, aceitando que as pessoas sejam capachos do Destino, brinquedos das adversidades humanas, que abram mão de seus próprios talentos para trabalhar em servidão a algozes, a encarar a degradação social própria, anulando projetos de vida valiosos, que não podem ser feitos em qualquer encarnação.
É certo que a reencarnação existe, a vida espiritual existe e a vida não termina após a morte. Mas usar isso para defender que pessoas aguentem dificuldades acima dos limites e capacidades é defender o desperdício da vida, sob a desculpa de que "as desgraças de uma encarnação inteira só só um segundo diante da eternidade da vida futura".
Isso é um grande desrespeito e uma perversidade às pessoas. É brincar com o sofrimento alheio, se escondendo por trás do escudo da religião. Ignorar individualidades, talentos, necessidades, limites e problemas que os outros sofrem só faz o religioso, sobretudo o "espírita", mostrar seu caráter desumano, moralista, severo e desprezador, até porque moralistas assim nunca passaram pelo sofrimento que os desafortunados da sorte têm que suportar no dia a dia.
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