quinta-feira, 13 de outubro de 2016
O Rio de Janeiro que já não é modelo para coisa alguma
Um Rio de Janeiro velho, cansado, desgastado, viciado. O Rio de Janeiro dos fumantes inveterados dos mercados com preguiça de renovar estoques, da poluição e das ruas sujas e fedorentas, do fanatismo doentio do futebol que faz torcedores gritarem feito trogloditas até mesmo durante a noite.
Este é o Estado e sua respectiva capital que não servem de modelo para coisa alguma. E que enfrenta sua tragédia até em áreas antes consideradas glamorosas, na última segunda-feira, um confronto entre traficantes e policiais transformou o entorno de Copacabana e Ipanema em praças de guerra, vivendo um pesadelo tipicamente suburbano em pleno coração da Zona Sul carioca.
São problemas demais para atribuir a uma "complexidade normal da vida moderna". Nem para cidade pós-moderna serve, porque são tantos os dramas, tragédias, transtornos, gafes e outras decadências, que a única constatação que se deve admitir é que o Estado do Rio de Janeiro regrediu a um atraso que envergonharia até Estados isolados da Região Norte do país.
A pistolagem correu solta na Baixada Fluminense e chegou, em plena luz do dia, ao bairro de Madureira, que meses atrás era usado pelo prefeito Eduardo Paes para virar a "Zona Sul dos pobres", com uma prainha pequena, a do Parque Madureira, de funcionamento estranho - só abre às nove da manhã, contrariando recomendações médicas quanto ao sol da manhã - e limitado, e com uma área que não atende à demanda que normalmente se dirige ao imenso litoral "do Leme ao Pontal".
Em plena tarde, havia sido assassinado o ex-presidente da Portela, Marcos Falcon, por pistoleiros que saíram tranquilamente num bairro movimentado como o de Madureira. E até agora, duas semanas depois do crime, ninguém foi recapturado. Enquanto isso, na "provinciana" Aracaju, assaltantes que invadiram uma rádio FM, na noite de um sábado, foram identificados e capturados em menos de uma semana.
Para piorar as coisas, a aparente felicidade dos cariocas, capazes de dormirem tranquilos até depois do anúncio da PEC 241, a "PEC do Teto" que irá cortar gastos públicos e transformar a vida dos brasileiros num caos, sob a desculpa de "garantir o crescimento econômico" e "combater a crise", nem de longe pode ser considerada sinal de perseverança e otimismo.
Isso porque a decadência aparece em todos os setores. No transporte coletivo, se observa a retirada gradual de circulação dos modernos ônibus de piso baixo, que beneficiavam sobretudo idosos, um reflexo do desgaste do modelo de 2010, implantado de maneira autoritária por Eduardo Paes e sob a blindagem de busólogos que praticavam grosserias e humilhações nas redes sociais.
A retirada de ônibus de piso baixo, reflexo tanto das reduções arbitrárias e nada funcionais de percursos - linhas que chegavam à Gávea reduziram seu percurso para a estação do metrô de Siqueira Campos, em Copacabana, mais para o lado do Leme - quanto do fim dos grandes eventos esportivos como a Copa e as Olimpíadas, também ocorre para pagamento de dívidas das empresas de ônibus envolvidas. A retirada também é feita por empresas intermunicipais.
Coitados dos idosos que precisam fazer força nas pernas para entrar nos ônibus. Isso num sistema injusto, já marcado pela pintura padronizada que confunde os passageiros, permite a corrupção e faz com que ônibus provoquem acidentes sem que viva alma possa identificar de imediato qual empresa foi envolvida. É a mesma pintura escondendo empresas que mudam de nome, que trocam de linha, que sucateiam a frota, sem que o passageiro saiba.
Só isso impede o carioca de passear ou se deslocar para qualquer finalidade. Mesmo trabalho. Mas há os excessos de automóveis, numa cidade cujos políticos reclamam da sobreposição de itinerários da ligação Zona Norte-Zona Sul, mas nunca reclamam da sobreposição de comerciais de automóveis numa verdadeira overdose publicitária servida a toda hora, desde o café da manhã, com pessoas ainda com sono, passando manteiga nos automóveis que devoram nas refeições.
Culturalmente, o carioca parece ter inveja dos gados bovinos que pasteiam pelo interior do Brasil. Se até na cultura rock, antes um foco de rebeldia e ousadia, o apego à mesmice do hit-parade atinge níveis preocupantes, vide a vergonhosa experiência da Rádio Cidade, hoje "escondida" na Internet, o que dizer da avassaladora monocultura do "sertanejo" e do "funk" que predominam o imaginário juvenil?
É um cenário cultural que as pessoas aceitam como carneiros no curral. Um mercado literário que desvaloriza o conhecimento, perdido em auto-ajudas, livros religiosos (a maioria de péssima qualidade, mas que promete "lindas lições") e besteirol de youtubers, que ainda mantém "livros para colorir" nos mais vendidos de não-ficção (?!?!), e um mercado teatral marcado por franquias de contos de fadas e desenhos animados.
Os próprios "heróis culturais" do público médio, no outrora moderno Rio de Janeiro, se tornam nomes do "sertanejo" e do "forró eletrônico", para não dizer o "funk". Ou subcelebridades como as ex-musas do Big Brother Brasil, que viram trend topics no Twitter até quando dão um simples espirro na rua, endeusadas por uma legião de fanáticos assustadoramente grande.
Sabe-se que o Rio de Janeiro também é o maior reduto de cyberbullying, a onda de ataques na Internet movida por internautas intolerantes, que não aceitam a expressão de quem discorda do estabelecido pela mídia, pelo mercado e pela política.
Variando entre humilhações gratuitas (que incluem até blogues de paródia difamatória) a comentários de falso desdém ("Xiii, lá vem o chato com aquele papo contra (o estabelecido), os "cães de guarda" do establishment só começam a decair hoje pela repercussão extremamente negativa que causaram e pelo fato de que até a sociedade conservadora tem que admitir que eles foram "longe demais".
O Rio de Janeiro sucumbe em todos os aspectos, porque virou a meca do consumismo, perdendo o caráter humanista que marcou a sua capital, antes a cidade-Estado do Distrito Federal e da Guanabara, há quase 60 anos. É uma cidade desumana, em que as relações sociais reduziram ao status constrangedor de mercadoria, as amizades servem mais para compartilhar um consumo, sem mais saber ou discernir valores e finalidades sociais da mera curtição comprada no mercado.
Os namoros viraram um mero consumismo sexual sob o ingresso caro em bares e boates e sob o combustível traiçoeiro do álcool. Amizades são medidas pela personalidade convencional, numa alegria forçada, como se fosse um diálogo de dois humoristas de stand up comedy, que têm o agravante de usar o fanatismo do futebol como medida para tais relações. Perguntam o time de alguém antes de perguntar o seu nome.
Se a pessoa não gosta de futebol, ela é discriminada. E, o que é assustador, o fanatismo do futebol impulsiona muitos cariocas a perturbar a sono de muitos cidadãos, que precisam dormir cedo para ir ao trabalho, em muitos casos acordando na madrugada seguinte.
As torcidas do Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo, em qualquer horário de uma partida com qualquer um destes times, gritam em altíssimos decibéis a cada gol realizado. Pouco importa se é quinze para meia-noite, por exemplo. A vizinhança mais parece arquibancada do Maracanã, do Engenhão ou do São Januário.
É esse o Rio de Janeiro que ainda tem fumantes inveterados soltando fumaça para não-fumantes inalarem em ruas semi-fechadas por prédios, de caminhões de lixo sem tratamento para conter o fedor, de supermercados com operadores de caixas lentos e uma demora inexplicável de renovar estoques de produtos, algo que está ficando raro na Salvador que costuma ser famosa pela "preguiça".
Não há como considerar o Rio de Janeiro como Estado-modelo de coisa alguma. Nem ao menos sua antes imponente capital. Como não dá para considerar São Paulo desta forma, ainda mais pela vocação eleitoral extremamente conservadora, que elegeu no primeiro-turno o nada carismático (a não ser entre os ricos) João Dória Jr.. Ou na outrora civilizada Curitiba, de proto-fascistas raivosos e de machistas ciumentos que matam suas namoradas em lugares públicos à luz do dia.
O Brasil precisa se reinventar à revelia das mesmas cidades-modelos que sofrem decadências vertiginosas. Essas decadências não podem servir de "modelo" para o resto do país, só porque vêm destas cidades. Nem toda "novidade" vinda do Rio, de São Paulo ou Curitiba, é sempre positiva. Há muito lixo exportado por estas cidades que cabe ao resto do país rejeitar.
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