quinta-feira, 15 de setembro de 2016
Formas de legitimar os abusos pela retórica
O Brasil se tornou um país vulnerável porque se sujeita a arbitrariedades e irregularidades diversas em nome de alegações e discursos que parecem objetivos ou agradáveis, seja prometendo benefícios futuros através de prejuízos aparentemente momentâneos ou retrocessos diversos apoiados pelo status quo de alguém. Isso sem falar da suposta imagem filantrópica de ídolos religiosos.
Existem armadilhas discursivas que fazem as piores perversidades serem aceitas como a mais generosa das bondades. E o mal que existe no Brasil é essa mania de dissimulação, que faz com que medidas retrógradas sejam aceitas ou irregularidades sejam toleradas em nome da reputação seletiva de uns poucos privilegiados.
Destacamos as principais armadilhas discursivas que fazem com que as pessoas sejam prejudicadas e enganadas sem saber. Movidas pelo prestígio de outrem, aceita-se verdadeiros malefícios mediante certos discursos não apenas verbais, mas sobretudo ideológicos, mesmo que se manifestem apenas em imagens ou pelo prestígio simbólico. Vamos a essas manobras do discurso:
1. DISCURSO TÉCNICO OU ACADÊMICO
O sistema de ônibus implantado no Rio de Janeiro em 2010, com seu trágico tripé pintura padronizada, dupla função de motorista-cobrador e redução de itinerários, implantado por Eduardo Paes, poderia fazer parte das "pautas-bombas" de Eduardo Cunha se não se apoiasse em discursos tecnocráticos, supostamente científicos, uma roupagem trazida pelo primeiro secretário de Transportes, Alexandre Sansão, sob inspiração do paranaense Jaime Lerner.
Esse é apenas um exemplo de como um processo perverso que afeta o direito de ir e vir e que, sucateando o sistema de ônibus, leva uma média mensal de 20 pessoas para os hospitais devido aos acidentes ocorridos e faz a corrupção empresarial correr solta com a pintura padronizada que impede a identificação visual de cada empresa de ônibus.
Mas existem outros exemplos, e que revelam como crueldades podem ser respaldadas por um discurso "científico" e "racional". Se as pessoas acabam sendo prejudicadas, um discurso "técnico" pode dizer que "são sacrifícios necessários", "transtornos que visam benefícios futuros". Legitimar o prejuízo alheio se apoiando numa retórica "racional e objetiva" é muito fácil.
As pessoas ficam felizes, porque é alguém "responsável", dotado de "competência e saber", que decide arbitrariedades se apoiando num discurso "científico" que, com sua verborragia, "explique" certos malefícios, definidos como "esperáveis" ou "necessários", sem saber da cilada em que caem.
E se a retórica "objetiva" parte de um Divaldo Franco, então, o pessoal delira. Há quem ache que ele é o "maior intelectual do país", considerando-o "filósofo" e tudo o mais. Se ele é considerado o "maior filantropo do país" ajudando menos que 0,1%, espera-se as definições mais delirantes.
Mas o discurso "técnico" já revelou seu caráter maléfico quando o nazismo da Alemanha usava a roupagem científica para definir certas "superioridades" raciais em detrimento de outras. No Brasil, chegou-se próximo a isso quando intelectuais da "cultura popular" definiam a degradação sócio-cultural do povo pobre como se fosse um conjunto de "qualidades positivas" às quais o menor questionamento era visto como "preconceito".
DISCURSO DA FAMA OU DA INFLUÊNCIA SOCIAL
As pessoas não conseguem perceber que, quando o governo de Michel Temer, insosso político de mentalidade retrógrada, se efetivou, políticos corruptos que nele se apoiam se empenham em "limpar a imagem" buscando deixá-la "limpa e admirável" na posteridade.
Romero Jucá, senador que, em sua breve trajetória como ministro de Temer, na sua fase interina, foi denunciado em uma gravação secreta negociando o golpe e outros esquemas de corrupção, foi promovido a presidente nacional do PMDB, sob o consentimento do Tribunal Superior Eleitoral.
O senador tucano Aécio Neves é acusado de muito mais escândalos de corrupção do que o que se atribui ao PT, mas o seu prestígio comparável ao de um "galã de novela" e a associação com qualidades simbólicas mais socialmente aceitas, o faz não só ser aceito como apoiado por setores influentes da sociedade.
Em muitos casos o prestígio e a fama se confundem com o prestígio econômico, mas a diferença é que o carisma do prestígio envolve qualidades simbólicas que vão além da riqueza financeira, envolvendo um poder social e uma capacidade de, se não contrai a admiração popular, traz alguma esperança na representatividade de algum fenômeno ou atividade.
Independente de serem carismáticas ou não, pessoas que obtém visibilidade através do status social acabam atraindo a aceitação ou a admiração popular, que se tranquilizam ao acreditar que o poder de influência de tais pessoas, por pior que sejam, é "saudável" e "natural".
É isso que faz com que o apresentador Luciano Huck, por exemplo, passe por cima de muitos escândalos, vários deles graves, como permitir que se veiculem mensagens socialmente preconceituosas numa grife de roupas na qual ele é sócio, ou de realizar obras em sua mansão sem obter alvará.
O caso mais aberrante é o sutil esforço que a grande mídia hegemônica tentou fazer transformando alguns assassinos famosos, associados ao feminicídio ou à violência no campo (respectivamente ligados a valores moralistas como o machismo e a propriedade privada rural), como "pessoas legais", tentando trabalhar uma imagem "simpática" dos mesmos, não bastasse eles estarem impunes e definitivamente fora da prisão.
Em nome do prestígio, observa-se uma Justiça desigual, não apenas a Justiça no sentido jurídico, mas o próprio sentimento das pessoas que não se indignam necessariamente por um crime cometido por alguém, mas se indignam seletivamente apenas com criminosos que não possuem grande status social, enquanto se tranquilizam com a carteirada social de criminosos mais ricos e poderosos dotados ainda de prestígio entre seus pares.
DISCURSO DA RIQUEZA
O discurso da riqueza e do poder econômico já envolve um aspecto bem mais restrito do que o da fama e da influência. É um status mais administrativo ou ligado a um sucesso econômico. Claro que não é fácil distinguir o prestígio da fama com o da riqueza e em vários momentos os dois parecem se confundir, mas neste caso, mas no caso deste item observa-se maior ênfase em qualidades administrativas ou num êxito econômico estável.
É a partir disso que pessoas vão alegres para a rede de lanchonetes McDonald's que há muito pratica um padrão precarizado de trabalho, "antecipando" a terceirização do governo Michel Temer. E isso com um cardápio cada vez mais decadente e caro, dotado da pior comida gordurosa, carne condimentada e temperos que caem como bomba nos estômagos.
É assustador observar, em locais como o Centro do Rio de Janeiro, que pessoas se sintam no paraíso comprando lanches de valor nutricional duvidoso e sustentando empregados que são humilhados, mal remunerados e mal assistidos. Tudo porque a McDonald's é uma grande empresa e possui uma posição respeitável no meio empresarial.
Mas há também o exemplo da recém-extinta Rádio Cidade, FM do Rio de Janeiro que se aventurou no segmento rock no qual nunca teve verdadeira vocação nem competência. A crise que vive a música rock nos últimos anos abateu a rádio, mas ela era endeusada por muitas pessoas por causa de seu impecável suporte empresarial e com a boa relação com empresas de entretenimento envolvidas com rock, o que destoa de sua programação que, no conjunto da obra, sempre foi ruim.
A ideia de "sucesso econômico" e "competência administrativa" fez muitas barbaridades serem aceitas por causa desse tipo de status. Jaime Lerner é um exemplo. Como político em geral, ele foi um "monstro moral" que fazia desvio de dinheiro público, obras superfaturadas e cometia descaso com os trabalhadores. Mas virou "santo" por conta de suas supostas façanhas pela mobilidade urbana, garantindo um mito tecnocrático até hoje requisitado em palestras.
Quando presidiu a República, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, respaldado pelo status de "acadêmico admirável" e "administrador responsável", criou um esquema de corrupção apoiado em privatizações que entregaram empresas públicas a companhias incompetentes e alimentou fortunas pessoais de FHC e outros do PSDB enviadas diretamente para os paraísos fiscais no exterior.
Em outros tempos, esse status trouxe a frase tão famosa "Rouba, mas faz", que foi primeiro associada ao governador de São Paulo, Adhemar de Barros, num passado não muito remoto (os anos 60, agora "resgatados" com a comparação do governo Temer com o golpe de 1964) e, depois, passou a ser associada ao político baiano Antônio Carlos Magalhães. O termo poderá voltar se caso Aécio Neves voltar à ascensão política se candidatando e vencendo as eleições presidenciais de 2018.
DISCURSO RELIGIOSO
A retórica religiosa, relacionada aos mitos de "bondade" e suas diversas simbologias - "caridade", "misericórdia", "amor ao próximo" - , também permite que pessoas cometam irregularidades protegidas pela mitificação religiosa.
A canonização de Madre Teresa de Calcutá é um caso ilustrativo. Ela cometeu irregularidades sérias, verdadeiros crimes, deixando seus "assistidos" sofrerem todo tipo de desgraça sob a desculpa de "se aproximarem de Jesus". Mas ela tornou-se "santa" de qualquer maneira e está associada a ideia de "caridade máxima" e "dedicação total ao amor".
Isso é grave, porque permite que a ideia de "bondade" possa ser associada à fraude, ao descaso e a tantos e tantos abusos. Vide o caso de Francisco Cândido Xavier ou de Divaldo Franco, que estão entre os "intocáveis" ídolos religiosos da história do nosso país.
Chico Xavier foi um plagiador e pastichador de obras literárias que realizou também falsas mensagens espirituais atribuídas a anônimos falecidos. Foi, também, um deturpador severo e de grande gravidade da Doutrina Espírita, com textos que abertamente contrariam o pensamento de Kardec, maculando seu sistema doutrinário com ideias bastante retrógradas e mistificadoras.
Mas como Chico Xavier foi protegido pela mística religiosa, ele passou por cima de tudo quanto era obstáculo. É o maior caso de impunidade conhecido no Brasil. Uma impunidade não só jurídica, mas também social, com adoração extrema e fanáticos que se multiplicam até mesmo no YouTube.
Para piorar, o próprio Chico Xavier se valeu pelo discurso falacioso do Ad Passiones, "apelo à emoção", sobretudo o Ad Misericordiam, "apelo à piedade", reagindo com coitadismo e vitimismo às piores acusações de fraude e falsidade ideológica, fugindo de todo tipo de questionamento através de uma falsa pose de vítima e de uma total encenação de poses chorosas e silêncio cabisbaixo.
Divaldo Franco é considerado "maior filantropo do Brasil" sem beneficiar sequer 0,1% da população brasileira. A "superioridade" de tal classificação se dá não pela quantidade ou qualidade de benefícios - pois o projeto educacional da Mansão do Caminho é medíocre - , mas pelo status religioso representado pelo "médium" e orador, famoso por seu texto empolado.
É este e os recursos discursivos acima citados que influem na consagração e no respaldo social a pessoas que cometem irregularidades e delitos graves, para não dizer crimes. O malabarismo discursivo das palavras e simbologias arrumadas legitima o erro, e faz com que pessoas atribuam superioridade social a pessoas erradas.
Algo tem que mudar e devemos nos preparar para ver as coisas além da aparência, questionando e desapegando de tantas ilusões e paixões cegas, mesmo aquelas que usam o verniz da "humildade" ou mesmo do "desapego", para evitar futuras e dolorosas decepções. Aparência não é tudo.
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