sexta-feira, 20 de maio de 2016
"Espiritismo" ignora que sofrimento demais dá prejuízo
Uma discussão familiar tensa, de pais preocupados com o desemprego de filhos adultos, que com todo o sacrifício que fazem, com jogo de cintura, metendo a cara, tendo esperança e muito esforço, perseverança até não restar mais gota de suor, não conseguem trabalho de jeito algum.
Os filhos têm dificuldades acima do suportável, e se esforçam mais e mais por nada. Se esforçam mais e mais de maneira inútil. As portas se fecham e nenhuma janela se abre, ou, quando abre, o primeiro vento a fecha. As oportunidades, quando surgem, lhes escapam das mãos, mesmo com o mais hercúleo esforço. A situação é dramaticamente surreal.
Parece conto de Franz Kafka mas é o Brasil. Um Brasil que se revela injusto, desigual, em que as elites querem proteger suas zonas de conforto e ficam presas a velhos paradigmas. Ficam felizes com a momentânea ilusão de que o governo Michel Temer irá manter esses paradigmas antigos, vários em verdade obsoletos, adiando as mudanças inevitáveis para o país.
Mas este é também o país da Teologia do Sofrimento. Uma corrente católica, medieval, mas que foi popularizada no Brasil no período colonial mas reforçada, sobretudo, pelas "palavras amorosas" de Francisco Cândido Xavier.
Isso mesmo. Foi Chico Xavier que defendeu, até mais do que muito católico, a Teologia do Sofrimento. A ideia de sofrer sem queixumes e sem mostrar sofrimento aos outros, de aguentar a barra até quando ela faz extinguir as forças, a paciência, o bom humor e a esperança. A ideia de aguentar demais as piores coisas achando que na "verdadeira vida" tudo vai melhorar.
Esta é a ideia mais perversa que se pode pregar para uma pessoa. Uma crueldade de querer que a pessoa simplesmente seja sufocada em infortúnios e barreiras intransponíveis, e ainda reprovar qualquer reclamação desta, quando ela não consegue superar suas dificuldades.
"Mude seus pensamentos", "sorria", "perdoe os algozes", "pule os obstáculos", é o que a doutrina dita de "amor e luz", a "religião da bondade" que se autoproclama o "espiritismo", diz, de maneira sádica e moralista. Porque o "espiritismo" acha que as barreiras são sempre pequenas e que os sofredores, quando reclamam, sempre estão com "frescuras".
ALMAS "ESMAGADAS"
Há uma canção, do grupo britânico The Smiths, com letra escrita e cantada pelo famoso Morrissey, intitulada "Please Please Please Let Me Get What I Want", pequena música de menos de dois minutos gravada em 1984. Nela, há um trecho que diz, sabiamente, "Bom tempo para mudança / Veja, a vida que eu tive / Poderia transformar um homem bom em mau".
Criminalizar o desejo humano, a vontade humana, é um procedimento do moralismo religioso. Com o "espiritismo", isso não é diferente. Enquanto os "espíritas" pedem para os sofredores perdoarem os algozes nos seus abusos, não perdoam os sofredores em suas desgraças.
Com todo o apelo de "fraternidade", "evitar maus pensamentos", "se alegrar na vida" e tudo o mais, o "espiritismo" que cobra demais dos infortunados, como se exigisse de um peixe que ele escale uma árvore, tenta, de maneira hipócrita, ainda apelar para as pessoas não pensarem em suicídio.
Diante do sofrimento exagerado, que deixa de ser um aprendizado para ser um processo de "esmagamento" da alma, de "asfixia" existencial da pessoa, o "espiritismo" ignora que sofrimento demais é como um remédio tomado acima da dose, no qual os efeitos curativos deixam de ocorrer, e o que ocorrem são os efeitos colaterais, altamente danosos e, não raro, fatais.
Diante do sofrimento exagerado, a pessoa passa a se tornar preguiçosa, rancorosa, isolacionista, deprimida, casmurra, violenta, cabisbaixa, e pensa em matar alguém ou se matar. O excesso de sofrimento e a imposição exagerada das dificuldades da vida deixam a pessoa acuada, e, evidentemente, pelo instinto do ser vivo, o sufoco exagerado traz uma reação bastante drástica.
Famílias brigam, pessoas ficam agressivas, outras ficam caladas de tão deprimidas, em luto permanente por si mesmas, outros indivíduos se matam, outros cometem homicídios, outros se tornam assaltantes e traficantes de drogas, outros se entregam ao álcool e às drogas, outros praticam corrupção para se aproveitar de um trabalho no qual não tiveram vocação natural para assumir.
O sofrimento exagerado, num contexto em que quem tem demais não quer ceder para quem não tem sequer o necessário, faz com que distorções sociais sérias aconteçam e, com isso, o quadro de violência, corrupção e suicídios que trava o progresso social do país.
Os "espíritas", com seu sutil sadismo, acham que nenhum sofrimento é demais, que a pessoa pode carregar uma bigorna de dez toneladas e, se não consegue, é porque é frouxa e cheia de frescuras. "Aquele peixe é que está de onda, não quer subir em árvore, acha que não tem meios para isso. Que tolice!", diz o alegre "espírita", tomado de sua vaidade travestida de "humildade" e "boas energias".
Os tratamentos espirituais chegam a ser mais perigosos do que passar debaixo de escada ou quebrar o espelho, segundo o folclore popular. Trazem muito azar. Em vez de resolver os problemas, trazem outros muito piores. E não adianta acusar o sofredor de falta de esforço e de boas energias.
As pessoas sofredoras, que reclamam demais da vida, que pedem oportunidades e solução de problemas, não são as pessoas preguiçosas, ranzinzas e desistentes que o moralismo "espírita" tanto fala. Muito pelo contrário.
As pessoas que estão nesta situação de desgraças extremas são as mais bem humoradas, de bem com a vida, dispostas para o esforço possível para vencer qualquer dificuldade, gente que aparentemente "reclama de tudo" para chamar a atenção das pessoas sobre as "sujeiras acumuladas" da vida cotidiana.
As pessoas que parecem "felizes" é que escondem suas neuroses. Dentro do "espiritismo", vemos pessoas com más energias, ranzinzas, egoístas, que cobram demais dos outros - não dinheiro, mas sacrifícios - , mas pedem tolerância para si. Não gostam de ver outras pessoas reclamando, porque isso lembra que tem que resolver este ou aquele problema.
Que egoísmo não pode esconder a pessoa que pede para os outros serem felizes do nada? Que egoísmo perverso, traiçoeiro, está por trás daquele que diz para os outros sofrerem sem queixumes? Que desprezo ao sofrimento alheio pode ser socialmente aceito através de um repertório de palavras moralistas, um exército de frases a reprimir o protesto alheio, enfeitadas com dóceis ideias?
Daí o sofrimento das pessoas que buscam soluções que nunca aparecem e que nem sempre são culpadas pelos obstáculos que surgem nos caminhos. A culpa maior é desse sistema de privilégios, aparências, moralismos e outros vícios que sempre fazem com que quem tem demais se mantenha nos seus abusos e quem não tem o necessário que se vire para obter alguma coisa.
Isso demonstra o fracasso do "espiritismo" brasileiro, que não consegue entender as angústias humanas com isenção, preferindo a fácil, mas desumana, atitude de pedir "fraternidade" e "mudança de pensamento" às pessoas que sofrem demais e que não querem paciência, querem, sim, a solução para seus problemas mais complicados.
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