quinta-feira, 14 de abril de 2016

Chico Xavier usa Humberto de Campos para pregar Teologia do Sofrimento


Oportunista, Francisco Cândido Xavier sempre tentava botar na conta das "personalidades do além" a sua linha conservadora de pensamento. Defensor entusiasmado da Teologia do Sofrimento, corrente da Igreja Católica que prega aos sofredores aguentarem com resignação as suas desgraças sob a desculpa de "receber mais rápido as bênçãos divinas", Chico não cansava de defender isso, com suas palavras.

Desta vez, ele, através do livro Reportagens de Além-Túmulo, de 1943, usou o nome de Humberto de Campos para mais um texto igrejista, com forte ranço católico, no Capítulo 28 intitulado "A Queixosa". A narrativa tenta imitar a agilidade de Humberto, mas ele nunca escreveria uma prosa igrejeira destas, de forte tom moralista e longe de significar uma leitura prazerosa e proveitosa.

Chico Xavier, desta forma, criou um conto de uma queixosa estereotipada que é abandonada por familiares e amigos só porque reclamava de suas desgraças. Botou na conta de Humberto de Campos e elaborou o texto com alguns colaboradores da equipe editorial da FEB.

A lição que traz este livro é perniciosa: "aguente o sofrimento sem reclamar e espere a bênção vir, não se sabe quando nem como". É certo que não devemos passar a vida toda reclamando, mas da forma que o texto demonstra, até um mínimo questionamento é amaldiçoado pela pena ultraconservadora de Chico Xavier, o mesmo que defendeu abertamente a ditadura militar.

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A QUEIXOSA

Francisco Cândido Xavier - atribuído supostamente a Humberto de Campos - Reportagens de Além-Túmulo - FEB, 1943.

   Benvinda Fragoso tornara-se amplamente conhecida pelas suas queixas constantes. Quem a ouvisse na relação dos fatos comuns afirmaria, sem hesitar, que a infeliz arrematara todos os desgostos do mundo.
   Órfã de pai e mãe, vivia à custa de salário modesto, numa fábrica de toalhas, onde fora admitida por obséquio de amigos devotados. Todavia, se a existência era laboriosa, não faltavam recursos para torná-la melhor. Não se casara, mas dois sobrinhos inteligentes e generosos faziam-lhe companhia no ambiente doméstico. Os genitores não lhe deixaram haveres em espécie, mas sempre legaram à filha o patrimônio do lar, edificado ao preço de sublimes sacrifícios.
   Benvinda rodeava-se de oportunidades benditas, mas não sabia aproveitá-las. Cristalizara-se nas queixas dolorosas, aniquilando as próprias energias. A mente enfermiça desfigurava as sugestões mais belas da vida diária.
   – Sou profundamente infeliz – dizia a uma colega de trabalho –, vivo insulada, à maneira de animal sem dono, ao léu da sorte. Morrer seria para mim uma felicidade. Diz-se que o fim é sempre doloroso. Não será, porém, mais agradável alcançar o termo do caminho no seio de tantas sombras e surpresas angustiosas?
   – Não digas isso, Benvinda – observava a companheira, com intimidade –, temos saúde, não nos falta trabalho, teus sobrinhos gostam de ti. Não nos sintamos desditosas, quando a oportunidade de serviço continua em nossas mãos.
   Mal-humorada – explodia a queixosa, exasperada:
   – Que dizes? a existência esmaga-me e desde a infância há sido para mim pesada carga de sofrimentos. Referes-te aos sobrinhos, e que significam eles em meu caminho senão agravo de preocupações? O mundo é cárcere tenebroso, inferno terrível, onde somos convocados a ranger dentes.
   Calava-se a colega, ante o transbordamento de revolta insensata.
   Na estação do frio, aferrava-se Benvinda em lamentações amargosas; no verão, acusava a Natureza, declarava-se incapaz de tolerar o calor ; e, se chovia, amaldiçoava as nuvens generosas.
   Dispondo de muitas horas no ambiente doméstico, a infeliz nunca soube valorizar o santo aconchego das paredes acolhedoras, onde os pais carinhosos lhe haviam dado o beijo da vida.
   Enquanto os sobrinhos, quase crianças, permaneciam no trabalho, Benvinda recorria às vizinhas e, mãos cruzadas em sinal de preguiça, continuava incorrigível:
   – Ah! Dona Guilhermina, a vida vai-se tornando insuportável. Este mundo resume-se em miséria e desengano. Até quando serei humilhada e perseguida pela má sorte?
   – Oh! minha filha! – respondia a interpelada, fixando gestos de mãe compadecida, por ocultar a verdadeira expressão da personalidade habituada à maledicência – Deus é bom Pai. Não desanime. Tenhamos confiança na Providência. Tudo passa neste mundo. A fé pode transformar nossas dificuldades em motivos de vitória e alegria.
   – Fé? – replicava Benvinda, exaltada – estou descrente das orações. Deus nunca me atende. Quando sonhava, há dez anos, a organização de um lar que fosse somente meu, rezei pedindo a proteção do Céu e meu noivo desapareceu para desposar outra jovem, mais tarde, longe de mim. Quando meu pai se decidiu à operação, supliquei à Providência lhe poupasse a vida, atendendo a que eu era órfã de mãe, desde os mais tenros anos, e sobreveio a infecção que o levou à sepultura. Quando minha única irmã adoeceu, recorri de novo à confiança no Poder Celestial e Priscila morreu, deixando-me os filhos por criar, através de obstáculos numerosos. Como vê a senhora, minha crença não poderia resistir a choques tamanhos. Estou sozinha, abandonada ; sou o cão anônimo, desprezado em desvãos do caminho.
   Mas, como a assistência espiritual da Esfera Superior se vale de todos os meios para socorrer ignorantes e infelizes, a vizinha, não obstante a má-fé, constituía-se em instrumento de consolação ao bafejo de amigos desvelados do Plano Superior e replicava:
   – Entretanto, quem sabe todas as desilusões não resultaram em beneficio? O noivo, que a enchia de esperança, talvez a envenenasse de desesperação, mais tarde; o genitor teria evitado a operação cirúrgica, mas possivelmente se tornaria dementado, percorrendo hospícios ou convertendo-se em palhaço da via pública; a irmã ter-se-ia curado da pneumonia, mas, viúva muito jovem, talvez lhe amargurasse o coração fraterno, cedendo a sugestões inferiores no caminho da vida.
   Em vez de ponderar as observações amigas, Benvinda retrucava:
   – Não me conformo: para mim a vida se resume no drama pungente que aniquila o espírito, ou na comédia que revolta o coração.
   A palestra continuava, pontilhada de lamentos e acusações gratuitas ao mundo, até que os rapazelhos chamavam à porta. A tia, que perdera tempo em lamúria improdutiva, aproximava-se do fogão, apressada.
   – Esta vida não me serve! – dizia em voz alta, amedrontando os jovens – até quando serei escrava dos outros, capacho do Destino? Maldita a hora em que nasci para ser tão desgraçada.
   Os sobrinhos miravam-na entristecidos.
   – Quando conseguirmos melhor remuneração, titia – exclamava um deles, bondosamente –, havemos de auxiliá-la, retirando-a da fábrica. Não é a senhora nossa verdadeira mãe pelo espírito?
   Benvinda, no entanto, longe de comover-se com a observação carinhosa, multiplicava as impertinências.
   – Não creio em ninguém – bradava de cenho carregado –, quando vocês puderem, deixarme-ão na primeira esquina. Não pensam senão em diversões e más companhias. Crêem que resolverão meus problemas com promessas?
   Observando-lhe a feição neurastênica, os rapazes esperavam a refeição, sisudamente calados. Terminada esta, regressavam naturalmente à rua. O ambiente doméstico pesava. A lamentação viciosa é força destrutiva.
   Benvinda não reparava que as amizades mais íntimas a deixavam sozinha no circulo das queixas injustificadas. Ninguém estava disposto a ouvir-lhe as blasfêmias e críticas impiedosas. As colegas de serviço evitavam-lhe a palestra desanimadora. As vizinhas refugiavam-se em casa ao vê-la em disponibilidade no quintal invadido de ervas rústicas. Os sobrinhos toleravam-na, desenvolvendo imenso esforço. Nesse insulamento, a infeliz piorava sempre. Começou a queixar-se amargamente do serviço e a acusar a administração da fábrica. Enquanto sua atitude se limitava a circulo reduzido, nada aconteceu de extraordinário; todavia, quando resolveu dirigir-se ao gerente para reclamações descabidas, recebeu a ordem inflexível de demissão.
   Enclausurada no desespero, não tinha percepção das oportunidades que se desdobram no caminho de todas as criaturas, nem compreendia que não era a única pessoa a lutar no mundo. Crendo-se mártir, agravou a ociosidade mental e foi relegada a plano de absoluto isolamento.
   Nem amigos, nem trabalho, nem colegas, nem sobrinhos.
   Tudo fugiu, evitando-lhe a atmosfera de padecimento voluntário.
   Depois de perder a casa, em venda desvantajosa, a fim de obter recurso à manutenção própria, passou ao terreno da mendicância sórdida.
   Foi nessa situação escabrosa que a morte do corpo a compeliu a novos testemunhos.
   Desencantada e abatida, acordou na vida real em solidão mais dolorosa. Ninguém a esperava no pórtico de revelações do Além-túmulo. Estava só, sem mão amiga.
   E os sofrimentos de que se julgara vítima na Terra?
   Não esperava convertê-los em títulos de ventura celestial? Descrera da Providência no mundo, entretanto, no íntimo, sempre acreditara que haveria glorioso lugar para os desventurados e famintos da experiência humana. Depois de longo tempo, em que se multiplicavam provas ásperas, rogou ao Espírito de sua mãe que a esclarecesse na paisagem nova. Tinha sede de explicações, ânsias de paz e fome de entendimento.
   Depois da súplica formulada com lágrimas angustiosas, sentiu a aproximação da desvelada genitora.
   – Benvinda – murmurou a terna mensageira, carinhosamente –, não te dirijas a Nosso Pai lamentando o aprendizado em que te encontras. Toda queixa viciosa, minha filha, convertese em crítica injusta à Providência. Estás convicta de que sofreste na Terra; entretanto, a verdade é que envenenaste os poços da Divina Misericórdia. Fugiste às ocasiões de trabalho, desfiguraste o quadro sublime de realizações que te aguardavam a boa-vontade nas estradas da luta humana. Hoje aprendes que a lamentação é energia que dissolve o caráter e opera o insulamento da criatura. Não conseguiste afeições em ninguém, não soubeste conquistar a gratidão das criaturas, nem mesmo das coisas mais ínfimas do caminho. Sofre, minha filha! A dor de agora é tua criação exclusiva. Não imputes a Deus falhas que se verificaram por ti mesma.
   – Oh! minha mãe! – suplicou a infeliz – não poderei, porém, voltar e aprender novamente no mundo?
   – Mais tarde. Por agora, para que alcances alguma tranqüilidade, incorporar-te-ás à extensa falange espiritual que auxilia os rebeldes e inconformados da luta humana. Reduziste a existência a montão de queixas angustiosas, sem razão de ser. Trabalharás agora, em espírito, ao lado daqueles que se fecham na teimosia quase impenetrável, a fim de compreenderes o trabalho perdido...
   E a queixosa trabalha até agora, para abrir consciências endurecidas à compreensão das bênçãos divinas.
   É por isso que muitos homens, em momentos de repouso, são por vezes assaltados de idéias súbitas de trabalhos inesperados. Criaturas e coisas enchem-lhes a visão interna, requisitando atividade mais intensa. É que por aí, ao redor da mente em descanso, começam a operar os irmãos de Benvinda, a fim de que a preguiça não lhes aniquile a oportunidade, qual aconteceu a eles mesmos.

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