CARIOCAS CONDICIONAM AS RELAÇÕES DE AMIZADE AO CONSUMO DE AMBIENTES COMO AS CASAS NOTURNAS.
Algo está errado no Rio de Janeiro. As relações sociais andam se deteriorando sutilmente, e pessoas consideradas da "boa sociedade" estão evitando manter amizade com pessoas que expressam um questionamento aprofundado das coisas, que passam a serem vistas como "incômodas" e "estranhas".
O Rio de Janeiro está em crise séria, e não se limita apenas ao âmbito da Política, da Economia e da Segurança. A crise é generalizada, de tal forma que, culturalmente, o Estado prefere considerar como "valiosas" aberrações como o "funk carioca" e a programação "roqueira" da Rádio Cidade, emissora sem competência nem tradição para o rock e não tem sequer pessoal especializado no gênero.
O mais grave problema é que a crise que atinge o Rio de Janeiro, que se manifesta em uma infinidade de incidentes, alguns trágicos, outros cômicos de tão ridículos, é vista com indiferença pelos próprios fluminenses, que reagem a esse quadro da pior maneira, ignorando-o ou achando tudo "normal" dentro do que eles chamam de "complexidade da vida urbana".
A crise, no entanto, está muito acima do que se pode considerar como "aceitável" na "complexidade da vida urbana". A ideia não é o Rio de Janeiro ter "problemas típicos de metrópole", mas problemas que expressam uma decadência profunda que dá, ao Estado e sua antes imponente capital, um ar de provincianismo decadente, ancorado pelo neocoronelismo que envolve autoridades cariocas.
As pessoas no Grande Rio parecem sentir alguma fobia a contestações e necessidade de manifestação. E fazem uma discriminação grave contra quem questiona o estabelecido. Até pouco tempo atrás, a maioria dos praticantes de trolagem vem de internautas do Estado do Rio de Janeiro, mas nem todas as discriminações sociais vêm de gente que pratica trolagem.
As piores discriminações vem de gente considerada "amiga", pessoas aparentemente simpáticas e amistosas, respeitosas e respeitáveis, admiráveis até certo ponto, mas que condicionam a amizade ao compartilhamento de certos bens de consumo da "vida moderna" carioca. Ou seja, as relações de amizade são relações de consumo, de mero compartilhamento de lazer.
SOCIEDADE PRECONCEITUOSA
A sociedade carioca tornou-se preconceituosa. Criou-se um pensamento único e reacionário que contamina até a chamada "mobilidade urbana" (ônibus com pinturas padronizadas e itinerários reduzidos, praças gigantescas no Centro da cidade que obrigam pessoas a andarem mais etc) e um senso de pragmatismo (se satisfazer com pouco, tido como "básico dos básicos") que fazem o Rio de Janeiro se retroceder em décadas por conta de tantas posturas retrógradas.
E aí surgiu a mania de condicionar as relações de amizade por alguns ritos sociais que nem são tão benéficos assim: ir a uma boate da moda, torcer por futebol, aceitar "novidades" por mais absurdas e nocivas que sejam, não questionar as coisas, ficar se divertindo à toa, e rir das desgraças em vez de resolver problemas.
Há uma situação surreal de que, quando existe um problema e ele é discutido no meio privativo dos fóruns de Internet, todos debatem serenamente o problema, até com desabafos duros, porém dentro de uma esfera de respeito e um mínimo de bom senso.
De repente, quando um dos internautas parte para ação e tenta resolver esse problema, os demais internautas reagem com fúria, e há até quem faça trolagem, despeje piadas grosseiras e ofensivas em petições na Internet, haja esculhambação e tudo, só porque um indivíduo ultrapassou os limites da discussão digital e foi resolver o problema através de uma ação mais concreta.
Há uma situação grave que é a do pessoal do Rio de Janeiro preferir fazer amizade com encrenqueiros que tenham um mínimo de prestígio social do que para pessoas aparentemente solitárias e de bom caráter que no entanto são conhecidas por "questionar todas as coisas". Como se, numa sociedade problemática como a nossa, houvesse uma parcela de problemas e retrocessos que "têm que ser preservados".
AUTISMO COLETIVO
Muitos indivíduos de difícil capacidade de socialização reclamam do preconceito que sofrem no Rio de Janeiro. Telefonam para marcar encontros e recebem uma desculpa como resposta. "Ah, tenho que ir à casa de minha tia", "Ih, não dá tempo, tenho compromisso", e tudo o mais.
Mesmo os amigos parecem indispostos em algum momento. Chamam os "garotos-problemas" - as tais pessoas que questionam o estabelecido e são alvo de discriminação no RJ - de "arredios", dizem que "exageram na dose" das contestações, e pedem para que eles fiquem "de bem com a vida", aceitando tudo de bandeja.
Para piorar, não são os contestadores "incômodos" que se isolam da sociedade. Eles querem que amigos lhes combinem encontros, improvisem locais para se verem, já que em certos casos a distância soa muito cara para um deles. Quem se isola é a sociedade carioca e os fluminenses que dela têm como modelo.
A amizade passa a ser condicionada pela presença no WhatsApp, pela frequência a uma boate ou um bar, pelo fanatismo pelo futebol (de preferência para quatro times, Flamengo, Fluminense, Botafogo ou Vasco), pela obrigação de sempre contar piadas, pela aceitação de "novidades" sem questionamento, mesmo quando elas revelam absurdos e malefícios.
Nas relações amorosas, os homens tendem a ser fanfarrões e as mulheres, insensíveis e nada carinhosas. Não há espaços gratuitos de paqueras e há muita discriminação nas escolhas amorosas, em que o caráter é deixado em segundo plano, em nome das conveniências sociais de todo tipo, sobretudo ligadas a dinheiro e prestígio estético.
Chega-se ao ponto de considerar que quem aceita os retrocessos no Rio de Janeiro, como um sistema de ônibus que se degrada completamente ou uma "rádio de rock" sem pessoal especializado, como a Rádio Cidade, é "gente como a gente", ganhando simpatia por aceitar os retrocessos que ocorrem por decisões vindas "de cima", a pretexto de acreditar que, se algo perde a qualidade, é porque os "mandões" têm algum motivo de sobra para que isso aconteça.
Se não aceitar, é alvo de preconceitos. E é isso que faz a sociedade do Rio de Janeiro se isolar, criando uma espécie de autismo coletivo. Não são os caras que "reclamam demais das coisas" que abandonam os amigos mais prestigiados, mas estes que, isolados nas suas convicções pessoais e nos seus hábitos de consumismo, se fecham e abandonam os amigos "mais estranhos".
É um fenômeno tipicamente brasileiro, porém mais típico no Rio de Janeiro. O autismo coletivo de grupos sociais que se fecham em si mesmos. Não há extrovertidos que se interessem a chamar os introvertidos a fazerem parte do grupo, os introvertidos é que têm que se virar para serem extrovertidos e se chegarem aos grupos extrovertidos, com muito "jogo-de-cintura".
No entanto, quando extrovertidos chamam um introvertido para se reunirem com o grupo, é quase sempre através de um comentário agressivo ou para forçar a adesão a alguma coisa. Houve casos de estudantes de uma universidade do Rio de Janeiro que forçaram um colega introvertido a experimentar cerveja, causando constrangimento a este.
SOCIEDADE RELIGIOSA
E a decadência que acontece no Rio de Janeiro ocorre por falta de religião? Muito pelo contrário. O Estado do Rio de Janeiro é um dos mais religiosos de todo o país, e na prática a unidade federativa - combinação do antigo Estado fluminense com o antigo Estado da Guanabara, que havia sido o Distrito Federal - ainda se comporta como sede operacional de movimentos religiosos.
Sede da Igreja Universal do Reino de Deus, principal reduto da Igreja Católica e espécie de "quartel-general" do "movimento espírita" - a antiga sede, hoje filial, da Federação "Espírita" Brasileira, é conhecida como "Vaticano espírita" - , o Rio de Janeiro superou Salvador (que, diz a lenda, parecia ter uma igreja para cada dia do ano) tornou-se um dos maiores redutos de atividades religiosas do país.
Há casos de religiosos que fazem trolagem na Internet, que transmitem pontos-de-vista altamente reacionários, que reagem com rancor e desdém a quem não pensa igual a ele e cometem discriminações sociais e morais gravíssimas.
Há um caso de uma mulher, de cerca de 45 anos, que é devota de Francisco Cândido Xavier - sim, o "médium" Chico Xavier - , e que, de forma inexplicável, passou a discriminar antigos colegas de escola para os quais chegou a ter alguma admiração na infância. Ela chega a "curtir" postagens deles no Facebook, mas na hora do encontro pessoal, ela os evita de maneira temerosa.
Pior: as pessoas acabam discriminando humanos e depositando mais afeição em cachorrinhos. O que é aliás um dado irônico, pois os cachorros demonstram mais espontaneidade e valorização da amizade do que os humanos, já que cachorros aparentemente estranhos entre si demonstram maior afetividade para outros cães, do que o que se vê na espécie humana.
Várias pessoas religiosas também manifestaram "patrulhamento" diante de certos temas, e não se fala de religião. Um "cristão convicto" chegou a dizer para um internauta apagar do Facebook uma página contrária à pintura padronizada e outros problemas no decadente sistema de ônibus do Rio de Janeiro (que terá mais linhas esquartejadas no fim de semana; o povo da Zona Norte que se vire com a "prainha artificial" em Rocha Miranda que só abre do meio da manhã e fecha antes do luau).
O Rio de Janeiro traz esse mau e triste exemplo de se fechar em preconceitos, zonas-de-conforto e convicções pessoais que fizeram sua sociedade se tornar mentalmente fechada e indiferente às transformações do tempo.
Perdido em problemas cuja gravidade subestima, e em retrocessos vistos como "naturais", os fluminenses, e, em particular, os cariocas, chegam a dar uma péssima demonstração social ao boicotar amigos que "reclamem demais" e não compartilhem do consumismo de boates, do futebol, do WhatsApp ou mesmo daquela "novidade" nefasta que somos obrigados a aceitar.
Assim o Rio de Janeiro perde ainda mais seu mérito de ser cidade-modelo e ponto de referência para o país, ante a crise generalizada que, como um câncer terminal, atinge o Estado e sua capital e pega de surpresa a "boa sociedade" envaidecida com suas zonas-de-conforto garantidas pelas vaidades das glórias passadas e pelas convicções pessoais que aceitam tudo de bandeja.
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