quarta-feira, 28 de outubro de 2015
Masterchef Júnior, hipersexualização e machismo
1995-1996. Famílias felizes da vida, iludidas com as roupas coloridas dos integrantes do É O Tchan, que usam tonalidades de cores alegres e fortes, tocam os discos do grupo em festas infantis. A TV aberta chega a estimular que meninas dancem igual Carla Perez e pais de família ficam tranquilos, acreditando na inocência do grupo que, ironicamente, lançou o recente sucesso "Sabe Nada, Inocente".
2015. Renata Frisson, a Mulher Melão, e Solange Gomes, ex-estrela da Banheira do Gugu, tentam resistir às mudanças do tempo e apelam para um erotismo grotesco, com seus corpos exagerados, indiferentes a valores e necessidades trazidas pelo feminismo e apegadas a um paradigma machista de exibir seus corpos como se fossem "mercadorias".
O que tudo isso tem a ver com o episódio mais recente de pedofilia? Muita coisa. O assunto da vez envolve uma competidora do reality show culinário Masterchef Júnior, derivado infantil do Masterchef, franquia brasileira transmitida pela TV Bandeirantes.
A menina de 12 anos, de nome Valentina, foi vítima de assédio sexual nas mídias sociais. Ela havia recebido comentários agressivos, maliciosos e grosseiros, vindos de internautas afoitos e violentos, tomados de impulsos sexuais descontrolados.
O resultado é chocante e humilhante, e reflete o quanto há de desordeiros nas mídias sociais, simplesmente agindo em grupo para fazer trolagens, humilhação virtual e tudo que acham que é direito fazer (e não é). Defendem de modismos midiáticos, arbitrariedades políticas até valores que vão do racismo à violência sexual.
O triste episódio, que com certeza assustou a menina, diante de tantos assédios violentos, fez com que as feministas criassem a hashtag (palavra-chave usada nas mídias sociais) #primeiroassedio, para que mulheres pudessem descrever o primeiro assédio sexual que receberam em suas vidas. Ou, em certos casos, até mesmo homens, que na infância são tão vulneráveis quanto as meninas.
E o que isso tem a ver com "popozudas" dançando "pagodão" ou "sensualizando demais" na mídia? Muita coisa. Afinal, muitos dos assédios sexuais são feitos por homens que desde crianças são "educados" pela mídia do entretenimento a agir e pensar dessa forma.
A hipersexualização tornou-se fenômeno de mídia nos anos 90, e segue um ideal de erotismo compulsivo que remeteu a uma estratégia da indústria do entretenimento da época da ditadura militar, em estimular a excitação sexual dos homens para evitar que eles protestassem contra o regime, que sofria então uma crise econômica e político-institucional, movida sobretudo pela crise mundial do petróleo e por atos abusivos como o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, há 40 anos.
Só que, diferente do que ocorria na época, em que as revistas pornográficas tinham acesso etário restrito pela Censura Federal e a "sensualidade" de nomes como a cantora brega Gretchen e as dançarinas do Cassino do Chacrinha e Clube do Bolinha era menos explícita, as "musas" dos anos 90 eram abertamente difundidas para a criançada, pela mídia e sob o apoio das "boas famílias".
Isso criou uma péssima educação infanto-juvenil, o que faz com que um duplo quadro na vida adulta se produza, dentro de processos comportamentais que refletem a grande influência que o machismo exerce no Brasil, sobretudo na mídia do entretenimento que guia o inconsciente coletivo da gente mais retrógada que age nas mídias sociais.
De um lado, machões extremamente afoitos, sexualmente descontrolados, ávidos em cultuar objetos sexuais que podem ser uma funqueira ou uma atriz de novelas infantis como Chiquititas. O que encaixar nas suas fantasias sensuais, serve, e danem-se os escrúpulos.
De outro lado, mulheres que parecem não fazer outra coisa na vida senão mostrar seus corpões, "sensualizando" fora do contexto, como se isso fosse um fim em si mesmo, numa clara transformação do corpo feminino em uma mercadoria simbólica para consumo dos machões compulsivos.
E se tudo isso é feito abertamente, por que uma parcela da intelectualidade, mesmo progressista e de esquerda, faz vista grossa quanto a isso? Por que mesmo mulheres que se consideram ativistas e intelectualizadas têm coragem de definir Solange Gomes e Mulher Melão como "feministas", rotulando o machismo que elas representam de "um tipo de feminismo popular"?
Afinal, é esse mercado de glúteos e bustos apelativos que impulsiona as taras de machões que são o público-alvo dessa hipersexualidade. Mulheres que "mostram demais" e não medem sequer contextos para uma sensualidade moderada e sutil - como fazem atrizes, modelos e até jornalistas de TV - alimentam esse contexto de taras masculinas que culmina no assédio à compeditora do Masterchef Júnior.
Isso porque as "popozudas", "boazudas" ou siliconadas em geral se dirigem a um público de homens, geralmente com baixo poder aquisitivo, baixo nível educacional e com instinto sexual desenfreado, que acreditam numa liberdade erótica sem controle, estimulada pela própria complacência de intelectuais demagogos que acham a decadência sócio-cultural o máximo.
São intelectuais que, num primeiro instante, choram contra o "preconceito", e apelam para que acreditemos que a decadência sócio-cultural que o mercado promove sob o rótulo de "popular" é algo positivo e que, sucumbindo as classes populares a um mercado de entretenimento que combina imoralidade e consumismo, se estará promovendo uma "revolução social".
Essa visão, repleta de muita hipocrisia, estabelece seu preço em vários aspectos. Daí os problemas de assédios sexuais que as mulheres em geral sofrem, porque muitos dos rapagões que hoje apelam para chamar qualquer uma de "vadia gostosa", seja uma anônima que anda pela rua, seja uma criança que veem na TV, eram também meninotes que viam felizes o erotismo "livre, leve e solto" na TV aberta.
São eles que viam excitados Solange Gomes "lutar" contra um concorrente para pegar um sabonete na Banheira do Gugu Liberato. São eles que viam as dançarinas do É O Tchan mostrarem seus glúteos em close pelas câmeras de televisão. São eles que viam as "musas do funk" afirmarem que "feminismo" era uma questão de muito silicone, pouca roupa e nenhum marido ou namorado.
Aí esses homens piram completamente. Poucos se atentam para o que essa "Disneylândia suburbana" que os intelectuais definem como "cultura provocativa das periferias", um engodo mercadológico patrocinado por chefões da mídia e latifundiários, influi no comportamento "selvagem" de muitas pessoas, forçando o preconceito existente nessa "cultura contra o preconceito".
Prostitutas empurradas pela intelectualidade "provocativa" de antropólogos, jornalistas culturais e até cineastas e ativistas comunitários, para manterem esse ofício a vida toda é apenas um pano de fundo dentro desse mercado cruel de degradação de valores sócio-culturais.
Muitas meninas são estupradas, violentadas e ainda são obrigadas a vender seus corpos para fregueses afoitos. E isso porque a "sincera etnografia" de antropólogos, historiadores, ativistas e jornalistas culturais queriam uma "liberdade sexual" sem controles, com a desculpa de que o mau gosto que isso representa era um "desafio" a "valores higienistas da alta sociedade".
Isso é pura demagogia. Enquanto, dentro de seus escritórios, gabinetes, colegiados e apartamentos, os intelectuais mais festejados e "polêmicos" do país diziam que a hipersexualidade era o máximo e a prostituição daria "qualidade de vida" para as mulheres pobres, na sombra de seu discurso festivo ocorrem estupros, assassinatos, escravidões e humilhações de qualquer tipo.
O caso Valentina é apenas um episódio de maior visibilidade, diante de uma triste realidade que o "feminismo de glúteos" e capaz de fazer. E mostra o quanto o Brasil ainda precisa rever seus conceitos de dignidade, principalmente nas classes populares que sofrem o mesmo drama de Valentina, mas não recebem a mesma projeção na sociedade e na mídia.
Por isso, é preciso observar os valores retrógrados que ainda prevalecem e que persistem mesmo disfarçados de "modernos" e "progressistas", apoiados sobretudo por uma elite de jornalistas, antropólogos, historiadores, cineastas, ativistas comunitários que ficam complacentes com a decadência sócio-cultural promovida pelo mercado e pela mídia.
Pois é essa decadência que ainda impulsiona instintos diversos de pessoas retrógradas que se manifestam com seu obscurantismo vandalismo digital nas mídias sociais. Precisamos repensar todo o país e questionar desde a intelectualidade cultural que temos até o tipo de sensualidade feminina que é empurrado pela mídia, a tentar corromper a infância de espectadores indefesos.
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