domingo, 27 de setembro de 2015

Madre Teresa e o "espiritismo" brasileiro: tratamento desigual

ENQUANTO MANDAVA MATAR ATÉ PADRES NA AMÉRICA CENTRAL, O ENTÃO PRESIDENTE DOS EUA, RONALD REAGAN, CONDECORAVA MADRE TERESA DE CALCUTÁ, QUE ACEITAVA FELIZ A PREMIAÇÃO.

A compreensão brasileira das coisas chega a ser aberrante. O que é diagnosticado por ativistas e analistas no exterior como problemas graves e sérios, aqui eles são vistos como "soluções" ou "qualidades positivas", com uma quase unanimidade que preocupa, e muito.

É o caso da apologia ao sofrimento humano defendida por Madre Teresa de Calcutá. Essa qualidade negativa faz parte de algumas das denúncias contra a missionária, que desqualificam sua reputação de "santa", que ela recebeu ainda em vida, e que chegam ao ponto de defini-la como "anjo do inferno".

Em outras palavras, Madre Teresa de Calcutá foi duramente criticada quando tentava defender que o sofrimento humano é "bonito" e que se deve sofrer com amor visando as bênçãos futuras do "céu". Aceita-se todo tipo de flagelo, infortúnio ou mesmo azar, e quando a tragédia chega à nossa porta, devemos recebê-la e tratá-la com carinho. Tal apologia é vista como um defeito aberrante.

Francisco Cândido Xavier pregava exatamente a mesma coisa, com todas as palavras - até mesmo o "perdoe, perdoe" de Madre Teresa, clamando à opinião pública que não culpasse os responsáveis pela tragédia química da Union Carbide em Bophal, na Índia, em 1984 parecia frase típica do anti-médium - e rigorosamente as mesmas ideias e princípios e de um enfoque não menos medieval.

Todavia, Chico Xavier foi considerado "progressista" (?!) e "ativista" (?!?!) por causa de tais visões, e a desculpa da "vida futura" - o "paraíso" dos católicos é a "vida futura" dos "espíritas", numa analogia exata - era bovinamente defendida pelos chiquistas "espíritas" ou simpatizantes como se fosse um conceito "da mais alta elevação moral" e da "mais pura generosidade humana".

Sim. São dois pesos e duas medidas. O que faz falta haver um Christopher Hitchens no Brasil, quando temos que avisar até a blogueiros de esquerda - que traçam um esboço de avaliação crítica consistente da realidade brasileira - que Chico Xavier não era tão "bom velhinho" assim e que defendeu a ditadura militar quando parte da direita golpista já se opunha ao regime.

RELAÇÕES COM A MÍDIA

A BBC, através de seu jornalista Malcolm Muggeridge, investiu na invenção do mito de Madre Teresa de Calcutá. E olha que a BBC era ideologicamente mais neutra, e o mito está associado diretamente ao repórter que a entrevistou para o documentário Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God), de 1969.

A Rede Globo, desfazendo a antiga hostilidade das Organizações Globo ao anti-médium Chico Xavier - resultante da influência de católicos como Alceu Amoroso Lima, Gustavo Corção e o espanhol naturalizado brasileiro Oscar Quevedo, o padre Quevedo - , resolveu reinventar o mito dele, através de reportagens de TV e do apoio aos filmes da Globo Filmes.

Os executivos da BBC não estavam atrelados à intenção pessoal de Muggeridge, e mesmo assim o mito de Madre Teresa não teve dificuldades de ser desmontado como um fenômeno produzido pelo sensacionalismo midiático associado a dogmas medievais.

No entanto, a aliança Organizações Globo X Chico Xavier não é sequer questionada no Brasil, exceto por uns poucos esclarecidos, e há gente que acredita, por exemplo, que o filme As Mães de Chico Xavier, uma co-produção da Globo Filmes, teve divulgação boicotada pela grande mídia, Globo inclusive!

A blindagem em torno de Chico Xavier revela tais absurdos, e o pior é que a própria corporação, as Organizações Globo, diferente da isenção da britânica e estatal BBC, que permitiu que um jornalista criasse pessoalmente um mito, compartilhasse da mitificação de Chico Xavier, já trabalhada sutilmente desde 1944, antes da Globo "fazer as pazes" com o anti-médium (coisa de uns 35 anos).

Sim, a BBC independente não compartilhava necessariamente com a exaltação ou depreciação de uma missionária e deu carta branca para um repórter trabalhar seu mito como quisesse. Já a Rede Globo, O Globo e a Globo Filmes trabalharam para reconstruir o mito de Chico Xavier, com evidente cumplicidade ideológica, e as pessoas imaginam que nenhuma mitificação foi criada.

Ou seja, o pessoal no exterior viu manipulação midiática evidente no documentário da BBC e há quem vê cumplicidade nos diretores da BBC com a mitificação da missionária. As pessoas viam manipulação até onde havia "isenção", quando a culpa pela invenção do mito de Madre Teresa se deve tão somente a Muggeridge. Nem todos os produtores compartilharam das fantasias dele em relação à missionária.

Já no Brasil, as pessoas veem "isenção" onde havia manipulação ainda mais escancarada, e poucos conseguem ver o dedo da Globo na reconstrução do mito de Chico Xavier. Atribuem "isenção" onde não existe. Mas se as Organizações Globo enfiavam o grotesco "funk carioca" em todos os seus veículos e até a intelectualidade achava que o ritmo era boicotado pela grande mídia, é sinal que esse bitolamento da chamada "opinião pública" faz sentido no Brasil.

RELAÇÕES COM O PODER

Outra denúncia relacionada a Madre Teresa de Calcutá está nas boas relações que ela tinha com tiranos, ditadores e magnatas corruptos, participando alegremente de esquemas de lavagem financeira para transferir boa parte do que ela arrecadava com os ricaços para os cofres do Vaticano, deixando suas instituições de "caridade" à própria sorte, sem medicamentos nem comida necessários.

É notória a condecoração que o então presidente dos EUA, o republicano Ronald Reagan, deu à Madre Teresa a Medalha da Liberdade, que reagiu com felicidade, atribuindo a Reagan e seus consortes um suposto altruísmo. "Eu nunca percebi que você amava as pessoas tão ternamente", disse a madre ao presidente. A cerimônia aconteceu em 1985, em Washington.

Só que Reagan estava envolvido com uma política imperialista de eliminar os focos de movimentos sociais em países da América Central, como Guatemala, Nicarágua ou mesmo o país da América do Norte, mas ligado à América Latina, o México. A perversa política está registrada em documentos secretos posteriormente divulgados pela imprensa estadunidense.

Era uma política sangrenta de "limpeza social" em que o Departamento de Estado dos EUA e a CIA financiaram toda a ação do crime organizado e dos esquadrões da morte que realizavam chacinas a esmo, com o objetivo de eliminar ativistas sociais, sindicalistas, intelectuais, jornalistas investigativos padres, cientistas e até inocentes que estavam no meio do caminho.

Madre Teresa se envolveu também com um ditador da Albânia e com o conhecido ditador do Haiti, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, supostamente para obter fundos para a filantropia. Segundo acusava Christopher Hitchens no documentário Anjo do Inferno: Madre Teresa de Calcutá, a madre dava "consolo espiritual" a ditadores e exploradores ricos.

No entanto. no Brasil, Chico Xavier e Divaldo Franco sempre estiveram de mãos dadas com poderosos e ricaços, só de forma mais sutil e discreta. No Brasil existe essa manobra. As manipulações e conchavos são feitos de forma bem mais dissimulada, de forma a evitar o vazamento, ao menos imediato, de escândalos.

Eles não conseguem realizar uma transformação digna e profunda no Brasil - Chico achava o sofrimento dos desgraçados "muito bonito" e Divaldo, com sua Mansão do Caminho, só ajudou, em toda sua história, 0,08% da população de Salvador, o que em escala mundial é o mesmo que nada - e no entanto desfilaram (Divaldo ainda desfila) ao lado dos privilegiados e poderosos.

Eles também receberam prêmios como Madre Teresa de Calcutá. "Desapegados" da matéria, se orgulharam e se envaideceram com as homenagens terrenas, como também desenvolveram sua vaidade e presunção pela reputação materialista e mundana de "personalidades superiores", mergulhados eles nos límpidos oceanos do orgulho e da certeza de que conquistarão o Paraíso em, pelo menos, poucas encarnações.

No entanto, em várias fotos que pesquisamos de Chico Xavier e Divaldo Franco em suas homenagens, é só prestar a atenção nos seus semblantes e verá, sem muito esforço, uma evidente vaidade e um regojizo esnobe de quem se deleita com as homenagens mundanas no bacanal dos poderosos.

Mas o Brasil fica complacente a eles e as mídias sociais mostram isso. É assustador. Duas pessoas que deturparam a Doutrina Espírita, com desonestidade doutrinária e falsidade ideológica (como Chico Xavier usando o nome de Humberto de Campos em alguns livros) que são beneficiadas pela mais absoluta impunidade e imunidade, apesar de seus delitos graves e evidentes.

Daí que o Brasil tinha mesmo que ser o país da impunidade, das injustiças sociais e da supremacia da mentira bem-sucedida, das graves falsidades que, dependendo da reputação de alguém, podem receber o apoio quase unânime da sociedade ou mesmo daqueles que deveriam agir pela justiça social e pelo combate a desonestidades de todo tipo.

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