domingo, 19 de julho de 2015

O duplipensar "espírita"


Na obra 1984, de George Orwell, a Oceânia adota a técnica do duplipensar, que se fundamenta no falseamento da realidade, na manipulação da informação, na adulteração do passado e no desenvolvimento de um pensamento em que mentira e verdade se confundem. O próprio sentido de duplipensar é dúbio, podendo ser a mentira necessária ou a verdade absoluta, mesmo quando apresentam sentidos invertidos.

Vendo o caso do "espiritismo", que sofre sua grave crise desde que se aprofundaram os questionamentos, as reações feitas ainda se baseiam nas ilusões fáceis de outros escândalos. Vários casos pareciam render vitórias inabaláveis para os "espíritas", que imaginam poder dar a volta por cima na atual crise.

Em 1944, tiveram a sorte de ter sido o questionamento feito contra eles - que envolvia a apropriação de Chico Xavier à imagem simbólica do falecido escritor Humberto de Campos - desconhecido dos meios jurídicos de então, o que significou a inocência do anti-médium, não porque ele ganhou a causa, mas porque ele foi favorecido pelo zero a zero jurídico.

Em 1958, o sobrinho do anti-médium, Amauri Xavier, ameaçou revelar os bastidores da produção de livros "espíritas", prometendo dar informações sobre a sexta edição de Parnaso de Além-Túmulo, da qual chegou a colaborar. Com isso, o "movimento espírita" teria realizado uma campanha de calúnias contra o jovem, estranhamente falecido em 1961. A blindagem conseguiu salvar Chico Xavier de um novo escândalo.

Entre 1965 e 1970, começaram a ser denunciadas fraudes de materialização, a partir das atividades de Otília Diogo que, entre outros personagens, se passava pelo espírito da irmã Josefa. Chico Xavier apoiava tais brincadeiras, e teria assistido a várias delas desde 1953, chegando mesmo a assinar atestados para forjar autenticidade a essas farsas.

No entanto, apesar da cobertura investigativa da imprensa, que irritou os "espíritas" (sim, eles se irritam), Chico Xavier saiu imune pela interpretação, um tanto malandra, de que "cúmplice não é culpado". E o anti-médium foi depois ao Pinga-Fogo da TV Tupi defender a ditadura militar e seus seguidores fizeram vista grossa a isso.

Entre 1973 e 1975, Chico Xavier chegou a apoiar, explicitamente, um projeto de deturpação ainda mais radical através de traduções grosseiras de um livro de Kardec. José Herculano Pires denunciou o escândalo e a deturpação foi cancelada.

Era a época do auge da crise do roustanguismo, e desde então o "movimento espírita" passou a adotar uma apreciação envergonhada da obra de Jean-Baptiste Roustaing. Quando muito, o roustanguismo se limita à cúpula da Federação "Espírita" Brasileira. Fora dele, o que se viu foi justamente a aplicação de um "duplipensar", uma postura dúbia que vicia até mesmo quem combate os vícios do "movimento espírita".

O duplipensar "espírita" consiste na ideia de buscar recuperar as bases doutrinárias de Allan Kardec, mas contraditoriamente continua idolatrando Chico Xavier, Divaldo Franco e suas atividades não obstante fraudulentas.

Se antes o mal do "espiritismo" era o religiosismo exagerado e um coquetel ideológico que misturava mistificação e moralismo, a atual linha investe na contraditória equação entre uma apreciação pedante dos temas científicos impulsionados por Allan Kardec e uma mística pseudo-humanitária simbolizada pelos estereótipos relacionados ao "bondoso" Chico Xavier.

Esse duplipensar chega a atingir até mesmo aqueles que, a princípio, até parecem espíritas genuínos, mas ainda se mostram condescendentes com Chico Xavier, seduzidos pelos estereótipos que cercam o anti-médium.

Com tudo isso, não há como recuperar as bases kardecianas se o maior de seus traidores se mantém a prova de qualquer contestação. Querer a autêntica Doutrina Espírita sem romper com Chico Xavier é um exemplo do duplipensar da Oceânia do livro de Orwell.

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