sexta-feira, 8 de maio de 2015
Fundamentalismo não é conhecimento de causa
Já se falou sobre o fundamentalismo nos tempos atuais, e eles vão, evidentemente, além do âmbito religioso. No Brasil, então, ele se torna mais típico, e a mania de "religiosizar" as coisas revela o quanto simples fenômenos do entretenimento e certas figuras da política e da mídia são alvo de fanatismo ou são "santificadas" pela suposta unanimidade midiática e digital.
O que muitas pessoas se esquecem é que o fundamentalismo não expressa necessariamente um conhecimento de causa, e nem se fundamenta (olha o trocadilho) em bases ideológicas originais. Pelo contrário, todo movimento fundamentalista defende sempre uma causa em segunda mão, quase sempre no seu primeiro processo de deturpação.
O termo "fundamentalismo" menos tem a ver com os fundamentos originais e mais com a intenção de transformar em "fundamentos" conceitos e valores deturpados, ou expressões e personalidades que em verdade têm crédito bastante duvidoso mas que se tornam unanimidades por alguma questão de status ou visibilidade.
Se até uma gíria como "balada" ou uma medida como a pintura padronizada nos ônibus têm seus fanáticos defensores, que espalham o terror nas mídias sociais com seu exemplo de intolerância e desrespeito humano, imagine então o que é o fanatismo religioso.
A própria mania de "religiosizar" as coisas - existe até mesmo a "religião" do futebol (principalmente o carioca) e a cerveja - transfere o sentido da fé cega para o cotidiano comum, um processo que se torna perigoso, mesmo quando travestido de objetividade.
DIVINIZAÇÃO DE PERSONALIDADES
É o caso da divinização de personalidades, mesmo que seja um Jaime Lerner ou uma Valesca Popozuda. Exportam-se sentimentos e modos de idolatria que são próprios do fanatismo religioso ou da devoção messiânica, superestimando qualidades que em verdade são medianas ou apenas inexistem, e colocando as pessoas acima de polêmicas e erros.
Em primeira instância, diviniza-se uma personalidade porque é do interesse da mídia do entretenimento ou então porque é dotada de algum status tecnocrático ou político. A mídia oficial transforma essas pessoas em "intocáveis" e elas praticamente se tornam "santas" nas mídias digitais, vide a predominância de referências elogiosas (algumas exageradas) na busca do Google.
São pessoas que a seletividade coloca acima de qualquer polêmica. Se Luciano Huck, por exemplo, se envolve em casos de insinuações à pedofilia e ao racismo em frases estampadas em camisetas de sua grife Use Huck, ele consegue contornar a situação e aparecer mais uma vez em seu programa como o "paladino" da assistência social, o jovem "titio" dos pobres.
Mesmo instituições como as "rádios rock" 89 FM (SP) e Rádio Cidade (RJ) e a Associação de Amigos e Profissionais do Funk (APAFUNK) têm essa imagem divinizada. São as "rádios rock" que se tornam templos de uma forma "pragmática" de rebeldia juvenil, amestrada e caricata, é a "entidade do funk" prometendo um "novo folclore" e um "novo ativismo social".
Nem sempre são coisas, pessoas ou ideias transparentes ou consistentes. Mas diviniza-se o que não vale a pena para a maioria das pessoas, mas é de interesse estratégico para uma minoria de "iluminados" e "influentes".
A pintura padronizada nos ônibus, por exemplo, é uma medida nociva, facilita a corrupção de políticos e empresários, causa transtornos sérios à população, não traz transparência para o serviço de transporte coletivo, desafia a atenção das pessoas e estimula a demagogia das autoridades.
Mas essa medida prevalece devido a interesses dos detentores do poder e tem até a blindagem de busólogos (admiradores de ônibus) dotados de arrogância e egoismo que os fazem perder a noção do que são as classes populares de onde vários desses reacionários, hoje pelegos, vieram.
REACIONÁRIOS
E por que esse e outros reacionarismos (como, por exemplo, as torcidas organizadas de futebol e os ouvintes das "rádios rock") acontecem? São manifestações de fundamentalismo, resultante de um misto de incompreensão, otimismo exagerado e intolerância social. Pessoas que acreditam na "esperança" de sua causa, e reagem com fúria à menor discordância.
Um exemplo de que o fundamentalismo não é conhecimento de causa está nos fanáticos pelas "rádios rock" 89 e Cidade, os quais não apreciam o rock senão por um punhado de "grandes sucessos". Eles desprezam e depreciam 99% do rock que, para eles, "não presta" por não estar na Billboard, na MTV nem em trilha de filme de Hollywood, ou não rola no festival de música realizado no Brasil.
Eles não entendem de rock, e criam uma "cultura rock" baseada na sua incompreensão, nas suas convicções pessoais, mais preocupados estão em torcer por futebol (esporte sem relação com o rock) do que saber qual o estilo de um guitarrista ou o som de uma marca de guitarra, coisas que esses "roqueiros donos da verdade" acham "inúteis" e tolas.
O reacionarismo fundamentalista ocorre não por "fora", mas por dentro mesmo. Quando o grupo é acusado de não apreciar as ideias originais, e chega mesmo a ameaçá-las - se pudessem, os ouvintes da 89 e Cidade extinguiriam o rock que não lhes agrada, o que aliás é quase todo o rock autêntico - , esse grupo reage com fúria, agressividade e parte para a violência, ainda que ela se manifeste apenas com gozações e ironias.
Em muitos casos há interesses escusos, envolvendo ascensão sócio-econômica, o que o discurso oficial não mostra, ao menos com evidência. Mas que orienta a histeria de seus fanáticos, que apostam na ascensão de seus grupos sociais, ainda que seja para fazer prevalecer seus interesses particulares sobre os da maioria da população. O povo acaba sendo "só um detalhe".
As pessoas tidas como "influentes" acabam se tornando "endeusadas" não porque realmente exercem uma influência benéfica, mas por conta de critérios como a fama, a formação acadêmica, o poder político, o apoio (ou, ao menos, a complacência) da grande mídia e as boas relações com os detentores de poder no mercado.
O Brasil, ainda dotado de um forte provincianismo, que faz com que deturpem novidades vindas de fora e tenha uma relação mal resolvida com os valores mais retrógrados e com as estruturas de poder das quais existe um movimento organizado para bloquear e reprimir qualquer ato de oposição social.
Por isso fica difícil implantar algum ideal de progresso, seja ele nacional ou trazido de fora. Há um jogo de interesses muito articulado e ferrenho que impede que algum desses ideais consiga ser introduzido na íntegra, e geralmente ele só é implantado na sua forma deturpada, geralmente assimilando elementos e valores da ideologia que deveria ser superada pelo novo ideal.
"ESPIRITISMO" MEDIEVAL
É o caso do "espiritismo" brasileiro que se baseou não nas ideias de Allan Kardec, mas apenas de uns poucos conceitos sobre vida espiritual parcialmente assimilados junto a influências da Igreja Católica, a corrente religiosa que os "espíritas" diziam se opor mas à qual se influenciaram tão fortemente que eles herdaram justamente o que havia de velho e descartado pelos próprios católicos.
Sim, isso mesmo. O "espiritismo" brasileiro preferiu se adaptar ao Catolicismo e até foi fundo. E o que vemos não é a doutrina de Kardec adaptada pela realidade brasileira, mas tão somente a fusão do Catolicismo medieval português com o misticismo da tábua Ouija, o duvidoso espetáculo de buscar contatos com os mortos.
O "espiritismo" acabou sendo mais um reflexo do "espírito do lugar", que faz o Brasil construir o "novo" em bases velhas. e o "progresso doutrinário" ainda buscou expressão máxima na figura conservadora e atrasada de Chico Xavier, Que somente a cegueira da fé classifica como "progressista", já que ele condenava o ativismo e preferia que sofrêssemos em silêncio.
Uma religião que se baseia na apologia ao sofrimento não expressa progresso social. Mas ela é tida como "progressista" pela confusão ideológica que as relações de poder e visibilidade existem no país, que sofre as consequências de desenvolver o "novo" através do velho.
Daí que muito do que parece moderno e progressista no Brasil é, na verdade, antiquado e retrógrado. Até mesmo os neo-fundamentalistas que, com seus palavrões e sua "rebeldia", defendem o "estabelecido" com sua agressividade e falta de respeito. Soam "modernos" na linguagem, mas são essencialmente medievais.
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