sábado, 24 de janeiro de 2015
Chico Xavier: um homem fascinado por contrastes
O que faz Chico Xavier fascinar muitas pessoas nem é a sua suposta imagem de homem bondoso, de símbolo máximo da caridade humana, mas a própria vocação de muitos brasileiros em viverem cercados de muitos contrastes.
Francisco Cândido Xavier nem de longe deveria ser uma personalidade importante, até porque seu perfil não diferia muito entre um ligeiro misto de Jeca Tatu com o Pagador de Promessas, mas que no fundo nunca teve qualquer serventia para a verdadeira Doutrina Espírita.
Se Chico Xavier tornou-se um mito, foi porque as circunstâncias favoreceram. A Justiça dos homens é falha, sendo condescendente ou rígida na razão inversa dos méritos. Temos uma democracia ainda frágil, voltada à manutenção das desigualdades sociais promovida pelas classes dominantes, eventualmente defensoras de soluções autoritárias.
No âmbito religioso, então, o Brasil mal conseguiu se livrar do ranço católico medieval que havia sido superado pelas nações européias no século XV, sendo nosso país só se livrado de seus valores na proximidade da República.
Daí o contexto do maior país da América do Sul assimilar muito mal as ideias de Allan Kardec, sem compreender seu nível científico bem de acordo com o contexto de seu país, da França das descobertas científicas e das correntes filosóficas, da Europa de intensas novidades intelectuais e científicas.
E aí veio o "espiritismo à brasileira", que aproveitou apenas alguns pontos amenos da doutrina de Allan Kardec, além de alguns conceitos genéricos (como admitir a vida após a morte e a reencarnação) e nele inseriu-se justamente o "lixo" que a Igreja Católica não queria mais.
Daí que o "espiritismo" brasileiro tornou-se a mais mofada das religiões, por ter trazido para si a "mobília"embolorada do Catolicismo medieval português, tirando todo o aspecto novo da doutrina kardeciana e sucumbindo a um religiosismo retrógrado e conservador.
Francisco Cândido Xavier foi o símbolo máximo desse "espiritismo" retrógrado. Ele reuniu todos os ingredientes ideológicos de uma mitificação que interessava aos dirigentes da FEB atraírem maior visibilidade à instituição, produzindo um personagem que pretendia ser uma aparente unanimidade entre os brasileiros.
Em princípio, Xavier personificava a figura do jovem caipira gentil, desses que entram em um estabelecimento, sorridente mas cabisbaixo, colocando o chapéu no cabide e cumprimentando todas as pessoas em volta. Mais tarde, a essa figura aparentemente humilde somou-se a do "bom velhinho" supostamente associado à experiência de vida e à sabedoria intuitiva.
Mas o que chama a atenção no mito de Chico Xavier é sua inclinação para os contrastes, o seu fascínio por ideias opostas, o que cabe muito bem num Brasil que quer parecer "novo" mantendo o "velho" e quer parecer "moderno" mantendo valores atrasados.
Chico já era fascinado por pessoas que falecessem jovens, já que isso representava um exotismo que contrariava o curso natural da vida. Muitos dos mortos dos quais ele se apropriou faleceram cedo, incluindo jovens anônimos, mas também alguns famosos.
Entre os que tiveram seus nomes usados na bibliografia de Chico Xavier, observa-se, em maioria, falecidos precoces: Irma de Castro, a Meimei (24 anos), poetisa Auta de Souza (25 anos), escritor Humberto de Campos (48 anos), Augusto dos Anjos (30 anos), Casimiro de Abreu (23 anos), Castro Alves (24 anos) ou mesmo Marilyn Monroe (36 anos).
Mesmo o fictício personagem de André Luiz, que pesquisas de conteúdo de textos revelaram coincidir suas ideias e sua narrativa com as de Waldo Vieira, parecia ter morrido na casa dos 40 anos, ou ao menos antes dos 60 anos de idade, depedendo da interpretação sobre quem ele "teria sido".
Chico imaginava então uma religião que protegesse o velho e sacrificasse o novo. Uma religião que criminalizava suicidas enquanto atribuía aos homicidas uma suposta missão de "reajustes espirituais" das vítimas.
Sim, o novo baseado na manutenção do velho e no sacrifício dos jovens. Que transforma vítimas em culpadas e culpados em "agentes do destino". E que faria de Chico Xavier a personificação de muitas ideias bastante contraditórias.
Ele pregava, em muitas de suas palavras dóceis, que nas dificuldades da vida a "voz" que deveria se expressar era a do silêncio. Se alguém pisar em nossos calos, não ousemos sequer gritar, bastando ficarmos quietos, "engolindo" a dor e orando em silêncio. Nem é questão de aceitar desculpas a quem pisou em nós, mas pura e simplesmente de aceitarmos quietos e serenos todo sofrimento.
Contraditório, o Chico Xavier que queria que nós sofrêssemos calados no "silêncio da prece" queria que nós nos libertássemos na castração dos nossos desejos, das nossas vontades e interesses, da repressão do que queremos, mesmo quando nossos desejos, vontades e interesses fossem para ajudar o próximo. Se tudo dá errado em nossas vidas, limitemo-nos a "orar em silêncio".
Chico é o anti-ativista por excelência, mas que é tido pelos seus adeptos como o "maior ativista do Brasil". Outra contradição. Afinal, Chico não gostava que as pessoas questionassem e se mobilizassem, preferindo que a sociedade se acomodasse em preces e apenas praticasse caridades paliativas que não rompessem com as estruturas dominantes de nossa sociedade.
A religião "chiquista" - como se tornou o suposto "kardecismo" feito no Brasil - glamourizava o sofrimento humano e, na sua mania de contrastes, pregava que o sofrimento era uma benção, que a ideia de sofrer, ainda que seja o pior dos sofrimentos, era vista como um "benefício", conforme a interpretação contrastante de Chico Xavier.
Ele mesmo personificava outros contrastes: era o interiorano promovido a "guia maior do Universo". Um pobre coitado tido como um quase Deus. Um suposto iletrado (na verdade Chico era "devorador" de livros) transformado em mestre. Um aparente ignorante transformado em sábio. Um autor de frases piegas que eram vistas como "ciência" por seus seguidores e simpatizantes.
Chico, além disso, era um conservador que seus adeptos supunham ser "progressista". Além disso, era um devoto católico, que entrou como penetra na Doutrina Espírita, que passou a ser visto até como "cientista" por conta de supostas previsões sobre como seria seu mundo, na visão dele, a partir de 2019.
Por isso, Chico tornou-se um homem cheio de contrastes. E isso encaixa muito no inconsciente de muitos brasileiros que, incapazes de desenvolver suas qualidades e tomados de muitos preconceitos, se confortam com as frases de Chico Xavier cuja "luminosidade" ofusca suas trevas interiores.
Daí que muitas pessoas que colocam as frases de Chico Xavier nas mídias sociais, se julgando dotadas de aperfeiçoamento espiritual, quando se encontram nas ruas com aqueles que os seguem nessas mídias (os seus amigos "virtuais"), os cumprimentam com terrível desdém de quem não quer tê-los como verdadeiros amigos.
Por isso, a Doutrina Espírita ficou comprometida no Brasil graças à figura contraditória de Chico Xavier e seus ideais. E fez com que os ideais de Allan Kardec fossem deturpados de tal forma que até para o que hoje são o Catolicismo e o Protestantismo o "nosso espiritismo" ficou bastante atrasado, obsoleto e antiquado.
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