sábado, 13 de dezembro de 2014
Chico Xavier e a "profecia" de Jean-Baptiste Roustaing
Jean-Baptiste Roustaing foi, a princípio, defendido com entusiasmo pelos membros da Federação "Espírita" Brasileira, desde sua fundação, em 1884, até por volta de 1940. Isso porque integrantes mais voltados ás bases doutrinárias de Allan Kardec, como Deolindo Amorim e Herculano Pires, começaram a denunciar os equívocos do roustanguismo.
As denúncias criaram uma série de escândalos e conflitos, crise que teve seu auge nos anos 1970, quando Luciano dos Anjos e o então presidente da FEB, Francisco Thiesen, fizeram suas últimas e constrangedoras defesas do roustanguismo, que depois sucumbiu à aparente decadência.
Mesmo roustanguistas com alguma convicção, como Divaldo Franco (embora ele jure que desconhece esta corrente ideológica) e Francisco Cândido Xavier, passaram a se manifestar, de forma tendenciosa e oportunista, "a favor" de Allan Kardec, apenas para agradar os amigos mais ligados às bases originais kardecianas.
Hoje temos uma espécie de versão light do roustanguismo, sem qualquer evocação de Roustaing e sem a defesa dos "criptógamos carnudos" - tese substituída por outra, mais dócil, que é a existência de animais domésticos e aves no mundo espiritual - e no "reconhecimento" da natureza humana de Jesus, embora sejam mantidos também os mitos e dogmas católicos referentes a ele.
Criou-se um roustanguismo moderado, supostamente fiel a Allan Kardec, pretensamente simpático aos conhecimentos científicos mas apegado a valores moralistas, vários deles presentes na obra de Roustaing, mas adaptados de forma a não precisar mais usar o nome dele para coisa alguma.
O roustanguismo foi adaptado já em 1932, quando veio a primeira edição de Parnaso de Além-Túmulo, supostamente atribuído a poetas falecidos, mas cujo estranho processo de reedições sucessivas, reparos, acréscimos e exclusões de poemas, revelou depois ser um livro não psicografado, mas organizado por Chico Xavier e uma equipe de editores e consultores literários.
Nele há vários exemplos da herança roustanguista, sobretudo da imagem igrejista do mundo espiritual que o "movimento espírita" trabalha até hoje. Um deles, num poema atribuído a Olavo Bilac mas que destoa do estilo original do poeta parnasiano, já descreve o Brasil como "coração do mundo" e "pátria do evangelho".
Mas a publicação que traduz com maior fidelidade o legado roustanguista é justamente com esse título, Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, também trazido ao papel por Chico Xavier, em 1938.
RELIGIÃO ÚNICA
Atribuído ao espírito do escritor Humberto de Campos, o livro é a perfeita adaptação de Os Quatro Evangelhos de Roustaing, sobretudo no que a obra francesa tem de fundamental: a absorção de várias crenças para a criação de uma religião única, um "espiritismo" feito com bases rigidamente católicas, de linha medieval moderada.
Cabe aqui esclarecer que o Catolicismo atual passou por transformações profundas - incluindo as do Concílio II do Vaticano, no Natal de 1961, que adaptou o movimento religioso para uma corrente progressista - que o fizeram superar parte de suas bases medievais, se adaptando às mudanças sociais, ainda que não abandonasse seus dogmas e seus princípios e mitos não raro surreais.
Já o "movimento espírita" brasileiro preferiu extrair o que o Catolicismo descartou de velho, já que sua base doutrinária se aproximou mais do Catolicismo medieval e inquisitorial português, que prevaleceu no Brasil do século XIX, consistindo num neo-catolicismo mais velho do que o próprio Catolicismo, já que o "espiritismo" adquiriu a "mobília velha" dos católicos.
O "espiritismo" só não defende a queima dos hereges em praça pública ou condenações como o enforcamento e a prisão em calabouços, mas seu rigor moralista sobrevive ao descrever o homicídio como crime mais brando que o suicídio, por atribuir ao ato de tirar a vida de outrem um "instrumento" de "reajustes espirituais" supostamente de outras vidas.
Além disso, o velho Catolicismo do século XIX não era adaptado aos novos tempos, mas antes apenas adaptado a um engodo místico-religioso que envolve a pseudo-ciência de cunho esotérico, evocando de maneira pedante as diversas correntes científicas só para justificar o "ecumenismo" ideológico do "espiritismo" feito no Brasil.
A ideia de "coração do mundo, pátria do evangelho", descrita num discurso ao mesmo tempo ufanista, piegas, falsamente profético e de um aparente caráter otimista, é na verdade um projeto de religião única, feita com base no processo jesuítico da "inculturação".
A "inculturação" era praticada pelos jesuítas desde o século XVI e através de pessoas como o padre Manuel da Nóbrega - que reaparece no "movimento espírita" sob o codinome Emmanuel - , que era a suposta aceitação e assimilação de outras crenças para dilui-las e "devolvê-las" a outros povos subordinadas à crença católica.
Isso era feito com as crenças indígenas e passou a ser feito também com a Doutrina Espírita de Allan Kardec. Assimilou-se a outra crença, e nela se introduziram conceitos e dogmas católicos, destruindo-a pela cooptação e posterior deturpação.
O projeto de "pátria do evangelho" seria, portanto, a ampliação do que o "espiritismo" já faz dentro dos seus limites geográficos e sociológicos. Seria a volta do Catolicismo medieval do Império Romano, mas adaptado aos contextos atuais, de economia globalizada e avanços tecnológicos extremos.
A "profecia" de Chico Xavier para a "pátria do evangelho", já descrita no livro de 1938 e reafirmada no sonho de 1969, é a concretização da "profecia" de Roustaing, de reunir as diversas crenças religiosas para se criar uma "única", que Roustaing se referia a um Catolicismo renovado e supostamente "ecumênico".
Essa ideia também foi feita precariamente por Alziro Zarur, que alguns supõem ser reencarnação de Roustaing, radialista brasileiro que fundou a Legião da Boa Vontade para misturar catolicismo com ideais protestantes e "espíritas", entre outras crenças.
Mas nada se compara às "profecias" de Chico Xavier nesse sentido, o que mostra que o anti-médium de Pedro Leopoldo e depois Uberaba sempre foi fiel a Roustaing, apesar do medo de assumir esse vínculo e da falsa fidelidade a Allan Kardec, autor que Chico nunca de fato se identificou para valer, vide os desvios que suas obras haviam cometido em relação à do pedagogo francês.
Xavier, portanto, aposta numa "evangelização" cujo centro seria o Brasil, revelando o sonho roustanguista da "religião planetária", através de uma rearticulação do Catolicismo medieval do Império Romano, desta vez sob a roupagem do "espiritismo" e tendo o Brasil como seu novo império.
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