sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Bezerra de Menezes e o "espiritismo" da República Velha

ILUSTRAÇÃO MITIFICADORA DO MÉDICO ADOLFO BEZERRA DE MENEZES, INSERIDO NUM CENÁRIO CÓSMICO.

Antes de Francisco Cândido Xavier, o "espiritismo" brasileiro trabalhou a mitificação do médico e político Adolfo Bezerra de Menezes, até hoje transformado num dos totens inabaláveis do chamado "movimento espírita" brasileiro.

A imagem que se tem do médico e deputado, que teria feito carreira no Segundo Império e se tornou um dos primeiros presidentes da Federação "Espírita" Brasileira, da qual participou também como um dos fundadores, é bastante glamourizada e fantasiosa.

É muito difícil obter relatos que mostrassem também os contras da carreira do dr. Adolfo. A busca do Google mostra apenas referências parciais, favoráveis ao médico, enquanto nos bastidores se observam informações que nem de longe foram investigadas a respeito do líder religioso que introduziu Jean-Baptiste Roustaing no imaginário brasileiro.

"Dr. Bezerra", como é carinhosamente conhecido pelos seus seguidores, foi cearense e viveu entre 1831 e 1900. Depois de falecer, tornou-se oficialmente um espírito a "sobreviver" desencarnado, virando uma espécie de "santo" do "movimento espírita" brasileiro.

Quase não se tem observações imparciais sobre ele. Tudo que chegou até nós, fora os relatos de descendentes de dissidentes espíritas, é de versões favoráveis a Bezerra de Menezes, em que são mais conhecidos relatos fantasiosos do que informações que contestassem seu perfeccionismo moral.

AFONSO ANGELI TORTEROLI - Um dos primeiros a reclamar o respeito às bases kardecianas.

Bezerra teve uma séria rivalidade com o italiano naturalizado brasileiro, o jornalista Afonso Angeli Torteroli. Este havia fundado o que poderia ser o embrião de uma instituição federal espírita, a Sociedade Espírita Deus, Cristo e Caridade, voltada a estudar a doutrina de Allan Kardec dentro da perspectiva original do pedagogo francês, de cunho científico.

Jogos de interesses deixaram Torteroli à margem, aos poucos diminuindo sua influência no nascente movimento espírita, enquanto os caminhos eram abertos à corrente de Jean-Baptiste Roustaing, o advogado francês que "adaptou" a Doutrina Espírita para os moldes religiosos e moralistas da Igreja Católica.

Houve uma polarização entre as correntes místico-religiosa, defendida por Bezerra, e científica, defendida por Torteroli, e prevaleceu a primeira, mais voltada aos interesses do nascente Espiritismo em moldar suas ideias para agradar a Igreja Católica, que havia sido hostil a essa crença.

Dessa feita, Bezerra, que originalmente era assumidamente católico, "catolicizou" o Espiritismo, se baseando nos ideais de Roustaing que durante anos foi entusiasmadamente defendido pela Federação "Espírita" Brasileira, até surgirem os movimentos dissidentes que denunciaram os exageros alucinados de Os Quatro Evangelhos, décadas após o falecimento de Bezerra.

Pouco se relata desses aspectos e o papel de Bezerra de Menezes é superestimado. Os relatos de dissidentes espíritas, depois de Torteroli, como Deolindo Amorim, Carlos Imbassahy (o pai) e José Herculano Pires, sobre os primórdios do "movimento espírita" da FEB foram subestimados e vagamente descritos pela historiografia original.

Segundo seus dissidentes, a figura "angelical" de Bezerra de Menezes, que se assemelha a de um "Papai Noel à brasileira", não passa de um mito construído pela FEB após seu falecimento e que continua valendo até hoje nos círculos "espíritas" brasileiros.

O lado sombrio de Bezerra é que ele era um político do tipo "fisiológico" - sem ideologia definida, mas eventualmente voltado à corrupção e ao jogo de interesses - , seu papel na campanha abolicionista, em que pese o lançamento de um livro, é minimizado pela História do Brasil e, como pessoa, o médico era temperamental e se irritava com muita facilidade.

Não há uma pesquisa isenta que pudesse falar desse lado, nem que pudesse investigar com detalhes a trajetória de Torteroli, jocosamente definido como "senhor T." por Canuto Abreu, biógrafo de Bezerra e membro da FEB.

O que se sabe é que, com Bezerra, o "espiritismo" brasileiro, em que pese as iniciais perseguições policiais aos seus cultos e à aparente rivalidade com a Igreja Católica, se adequou ao contexto da República Velha com seu jogo de interesses, seu conservadorismo moralista e as deturpações que transformaram o cientificismo de Allan Kardec em coisa muito bajulada e quase nunca estudada.

O "espiritismo" se encaixou nesse contexto em que o coronelismo, o voto de cabresto, o moralismo familiar, o fanatismo religioso, a pesada hierarquia social e a punitividade moral prevaleciam na sociedade brasileira.

O "espiritismo" só incomodava setores ortodoxos do Catolicismo dominantes na época, mas tão facilmente se adequou à religião, mas de forma quase heterodoxa, pois do Catolicismo aproveitou justamente vários aspectos medievais, como a glamourização do sofrimento humano, já trazida por Roustaing e, décadas depois popularizada por Chico Xavier.

A falta de dados imparciais sobre Bezerra, fora da visão glamourizada da FEB, é tanta que existem até relatos fantasiosos da vida espiritual do médico, descritos em palestras do anti-médium Divaldo Franco, que em muitos momentos usava falsetes como se estivesse incorporando o médico cearense.

O falsete foi constatado quando foram observadas irregularidades de timbre, linguagem e gestos das supostas psicofonias de Bezerra de Menezes por Divaldo Franco e por outro anti-médium baiano, José Medrado, em comparação registrada neste vídeo.

Dois relatos se referem, um, ao espírito de Bezerra transformado em caminhoneiro para transportar alimentos para a população carente por solicitação de Chico Xavier, e, outro, a ele se comunicando a policiais sobre a ocorrência de um estupro coletivo de uma jovem. Em ambos os relatos, Bezerra teria sido supostamente materializado.

Embora o "movimento espírita" anuncie como certeza absoluta que Bezerra permanece desencarnado, agindo como "espírito iluminado" a promover ações filantrópicas e a proteger os fiéis "espíritas" como se fosse um santo milagreiro - apesar do evidente não reconhecimento do Vaticano - , é duvidoso que Bezerra tenha realmente permanecido na órbita espiritual.

Consta-se que Bezerra teria, ao longo desses 114 anos, reencarnado pelo menos umas duas vezes, como identidades ignoradas, a primeira provavelmente cinco anos depois de falecido, vivendo até a velhice, a segunda, nos últimos 25 ou 30 anos.

Isso quer dizer que Bezerra de Menezes pode estar vivo e encarnado entre nós. E isso não é necessariamente bom: afinal, Bezerra teria muito que penar e resolver os seus defeitos devido à sua experiência como deturpador da Doutrina Espírita e político tendencioso que ele teria sido, e sobretudo quando seu passado foi dissimulado por uma imagem adocicada e glamourizada que hoje se conhece dele.

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